terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O olhar do Kassab - crônica em três atos


Para Paula Ribeiro Iauch

Primeiro ato
Ontem, por acaso, flagrei o momento em que uma viatura da Rota parou numa esquina dos Campos Elíseos para vistoriar três moradores de rua que passavam na calçada. Um deles levava um saco com badulaques e pude ver com nitidez seu olhar atônito ao tentar explicar para os policiais que eram objetos pessoais ou algo que o valha, e não fruto de roubo. Cena recorrente na região, mas que assume uma dimensão trágica e real quando a presenciamos.
Não esperei para ver o desfecho do episódio, embora saiba que quase sempre resulta em reprimendas enérgicas, humilhação, violência covarde e, em caso de suspeita, um passeio no camburão até a delegacia.

Segundo ato
Há coisa de um ano, a caminho do trabalho, passava ao lado da carcaça de um carro abandonado na Rua Albuquerque Lins, ao lado do Teatro São Pedro. Há dois meses, percebi que havia gente lá dentro, apesar de os vidros do carro terem insulfim. Mais alguns dias passando ali e entendi a situação. Um casal de moradores de rua, com duas crianças pequenas, passou a usar a carcaça do carro como moradia. O carro estava estropiado, mas os bancos estavam conservados.
Como passava sempre de manhã, às vezes encontrava a mulher sentada no banco do carona, com a porta do carro aberta, fumando. Era uma mulher de uns trinta anos, mas que pareciam sessenta diante do sofrimento que adivinhava em sua face encarquilhada. Enquanto ela fumava, as crianças descobriam graça no entorno eminentemente urbano da rua.
Algumas vezes vi seu companheiro, um homem igualmente envelhecido, dando a primeira tragada no cigarro, sentado na escadaria lateral do teatro. Pelo ar dos dois, imaginava que dormissem no carro à noite, fazendo do banco de trás local de descanso e sexo. As crianças, deduzi, deviam dormir nos bancos da frente.
Durante o dia, sabe-se lá o que o casal fazia. Pelos trajes que ostentavam, não acredito que tivessem empregos formais. Alguns transeuntes, sensibilizados sobretudo com as crianças, às vezes lhes deixavam lanches ou quentinhas. Cheguei a ver uma senhora entregando o que entendi ser uma mamadeira para a mulher.
Há duas semanas, ao dobrar a esquina do teatro, deparei com a carcaça do carro completamente destruída pelo fogo. Alguém deve ter jogado uma grande quantidade de líquido inflamável de modo a não sobrar nada do carro. E, de fato, o que eu via agora era apenas a estrutura de aço do carro, a parte que o fogo não consumiu. Do casal e de seus dois filhos, nem sinal.

Terceiro ato
Ontem, entre as notícias frívolas do carnaval, vi uma foto do prefeito Gilberto Kassab posando ao lado de três foliãs no sambódromo. O olhar das moças brilhava de emoção por estarem ao lado do alcaide da cidade. Alcaide que, há três semanas, doou um enorme terreno na região da Cracolândia para que o ex-presidente Lula construa um surreal instituto que levará seu nome. Um pequeno afago com o patrimônio púbico com vista a um espúrio conchavo político.
Passei o dia pensando no olhar das foliãs. E no olhar do Kassab, que não brilhava menos do que o olhar das meninas. Aqueles olhos azuis, falsamente infantis, representam muita coisa. Simbolizam o deslumbramento fútil dos que estão no poder. E a mediocridade da época em que vivemos. Simbolizam sobretudo a insensibilidade dos governantes com a sorte daqueles que não existem. Daqueles que apenas vivem. Como vivem os cães sem dono, os ratos, as baratas.

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