domingo, 29 de janeiro de 2012

Parabéns, tudo de bom! - crônica


Adriana se vira de lado na cama. Vê o marido com o smartphone em punho.
– O que está fazendo, Murilo?
– Estou no face, amor.
– Mas a essa hora da manhã!
– Hoje é meu aniversário, esqueceu?
– Claro que não, né.
– Pois é. E hoje eu me impus uma missão.
– Missão?
– É. Quero ver quem vai me mandar mensagem de parabéns e quem não vai. Vou descobrir quem é meu amigo de verdade. Depois vou catalogar tudo e ver o que fazer.
Adriana puxa o rosto do marido para si:
– Murilo, você pirou?

À uma da tarde, Adriana tem a certeza de que o marido não está num dia bom:
– Murilo, dá pra largar esse maldito celular um pouquinho e vir almoçar?
– Só um minuto, querida, chegaram mais duas mensagens. Da Raquel Gontijo e da Luciana Bezerra. Gosto delas. Mas aposto que a falsona da Berenice não vai me mandar nenhuma mensagem. Ela sabe que hoje é o meu níver, mas vai fazer questão de esquecer. Ela sempre dá essas mancadas.
– Murilo, o almoço está esfriando...
– No aniversário dela eu enviei uma mensagem bacana logo de manhã, de cinco linhas...
– Você fez a sua parte, oras... Agora vem comer, por favor...
– Olha só quem acabou de enviar os cumprimentos. Tudo bem que foi só um “parabéns, tudo de bom!”, mas pelo menos ela lembrou...
– Quem?
– A Ana.
– A Ana Renata? Ou a Ana Rebeca?
– Não, a Ana Júlia.
– Pfff...
– Que foi?
– Tô vendo que você ficou todo contentinho com um simples parabéns da sua ex.
– Nada a ver, more, não vai ficar com ciúmes logo hoje, né... Pelo menos ela lembrou. A Maria Leocádia, que trabalha dez horas por dia do meu lado, até agora nada.
– Mas ainda é uma da tarde, criatura! Não sei o que deu em você hoje. Não sei por que essa neura toda. No ano passado você não estava assim.
– No ano passado eu não estava no facebook. Mas agora que estou, decidi que só vai ficar na minha página quem for meu amigo de verdade.
Adriana solta mais um “pfff”, mas parece que o Murilo não ouve.

Ás cinco da tarde, Adriana desperta de um cochilo com os gritos do Murilo:
– Ganhei meu dia, Adri! Ganhei meu dia! – exulta o marido.
– O que foi dessa vez, meu Deus?
Ele estende o celular na frente da mulher:
– O Perón, meu gerente! Acabou de me enviar os parabéns! Sabe o que isso significa, Adri?
– Hum?
– Que aquele aumento vai rolar...
– Não viaja, Murilo...
– Ele me considera, amor. Sempre senti isso. Senão não mandava a mensagem. Aposto que para o Silvano ele nem mandou mensagem de aniversário...
– O aniversário do Silvano é no mês que vem...
– Como você sabe?
– Não foi você que disse que o Silvano é de escorpião? Ele deve fazer aniversário em novembro. Estamos em outubro...
– Eu disse isso?
Disse.

Às sete, Murilo já tem um mapa mais definido da situação. Entre mais de cinquenta cumprimentos, estão lá as mensagens da Sônia (“mandou só pra não ficar chato...”), da Ana Renata, da Ana Rebeca ("essa é amigona mesmo..."), da Cibele, do Rubão e da Maria Tereza.
Berenice mandou uma mensagem afetuosa de quatro linhas no fim da tarde. Já da Maria Leucádia, nem sinal de cumprimento. Murilo só está esperando dar meia-noite para deletá-la da sua página. Vem pensando mesmo em fazer isso. Só precisava de um pretexto.
– Imagina, ainda outro dia ela jantou aqui com a gente... Ingrata! – resmunga consigo mesmo.
Remói por mais de uma hora aqueles pensamentos cheios de fel até que não se contém. Procura a página da Maria Leucádia, vai no item “excluir amigos” e deleta-a a ex-amiga sem remorsos, como quem dá um piparote numa mosca.
– Pronto! De agora em diante, nada de amigos falsos na minha vida! Only good vibe!
Mal pensa isso, a campainha toca. Como Adriana estava no banho, ele mesmo abre a porta. Dá de cara com Maria Leocádia, que, com um presente nas mãos (provavelmente um livro ou um DVD) e um sorriso indefensável nos lábios, lhe diz:
– Feliz aniversário, querido!
E o puxa para um abraço apertado.

sábado, 7 de janeiro de 2012

No café - crônica


No café discreto em que estou – tão discreto que me sinto à parte da vida –, um casal com sua filha deficiente se sentam na mesa ao lado. O homem e a mulher aparentam a mesma idade, em torno de quarenta anos. A menina não deve ter mais do que quinze.
Não tenho conhecimento médico para identificar o problema que acomete a garota. Seu rosto apresenta um afundamento lateral que compromete estética e funcionalmente a boca e o olho esquerdo. Vejo cicatrizes de contornos irregulares, na certa tentativas da medicina de amenizar o impacto que aquela face causa em quem a contempla.
A garota traja tênis all star, calça jeans com rasgos calculados e uma camiseta com o rosto da Amy Winehouse. Na testa, uma franja coquete rente às sobrancelhas. Pelo contexto da conversa, deduzo que a menina cursa o ensino médio.
Percebo que o rosto da garota chama a atenção de imediato. O olhar das pessoas, tão logo o divisam, voltam-se para verificar a natureza da deformidade. Passado o choque, a reação fica por conta da discrição de cada um.
Chama minha atenção a abnegação dos pais para que a filha sofra o menos possível os efeitos sociais de seu infortúnio. O que se apresenta a mim naquele café é apenas a curta sequência de um pungente filme sobre devoção e entrega. Essa abnegação fica patente quando a garçonete se aproxima para anotar o pedido. Observo que a garota não faz cerimônia e, com uma certa graça, pede algo que a garçonete não entende.
–Desculpe... – a moça hesita, entre simpática e aflita, e volta-se num olhar súplice para os pais.
O pai compreende o embaraço:
– Ela quer saber se vocês servem bureka... – ele diz, num sorriso constrangido, que, presumo, afeta desconforto, como se a garota se expressasse num dialeto desconhecido e a ele coubesse o papel de tradutor-intérprete.
– Desculpe, senhor... – a garçonete tartamudeia, ante o olhar ansioso da garota.
Antes que o pai explique à garçonete o que é bureka, ao seu modo a garota tenta explicar seu pedido, mas é interceptada com rudeza calculada pelo pai (“Eu explico pra ela, Muriel...”).
– Desculpe, moça, – volta-se o pai – a gente sabe que não é em todo lugar que tem bureka.
E, voltando-se para a filha, explica a ela que não servem bureka ali.
Muriel faz um muxoxo de decepção. E sem perceber a aflição da garçonete, logo se refaz e dá um pulinho na cadeira, voltando os olhos para o cardápio.
– Nós já faremos o pedido – diz então o pai, um modo de liberar a moça e ganhar tempo para a escolha da filha.
O olhar do pai quase cruza com o meu. Disfarço que os observo. Na verdade fujo daquele olhar.
Gosto de imaginar as histórias silenciosas que correm, como rios subterrâneos, por trás das conversas que ouço. Tudo levado a termo de forma discreta, sem nenhum propósito de julgamento.
A garota age como se não tivesse as limitações de comunicação que tem. E a atitude do pai, de servir de intermediário, deve ser rotina na vida daquela pequena família. Uma terna compaixão começa a tomar forma dentro de mim.
A imagem me remete aos passeios que dava com minha filha, ao tempo em que ela era pequena, com menos idade ainda do que Muriel. Um período que se apresenta comprimido na memória, como se tivesse sido de apenas alguns meses.
Em minutos a garçonete volta para anotar o pedido. O pai mais uma vez procura facilitar as coisas, e faz um arrazoado do que cada um vai querer:
– Dois cafés puros, um chocolate médio, duas baguetes com manteiga e um croissant quatro queijos, por favor.
Refeita de sua aflição, a garçonete anota tudo. E antes que se retire, ouve a única palavra dita por Muriel que não precisa ser traduzida pelo pai:
– Obrigada.
Desvio de vez meu olhar e tento voltar aos pensamentos que me tomavam antes de notar a presença do casal. Não consigo, porém. Devia estar imerso em algo sem importância. Um desses pensamentos que nos fazem ficar horas e horas num café sem fazer nada e depois evaporam da mente para nunca mais.
De Muriel e de seus pais abnegados, contudo, eu nunca vou esquecer.