sábado, 24 de dezembro de 2011

A semente abandonada - crônica


Tenho na gaveta o projeto de um livro que jamais levarei a cabo. Trata-se da retomada de uma crônica do escritor Paulo Mendes Campos, chamada “A marquesa saiu às cinco horas”, na qual o cronista mineiro imagina como cada conhecido seu ou pessoa famosa de sua época falaria uma frase do escritor francês Paul Valery, justamente “A marquesa saiu às cinco horas”. O mote da crônica era a propósito de uma afirmação de Valery segundo a qual, num momento de bloqueio criativo, ele seria incapaz de escrever uma frase simples como essa.
Já brinquei muito com a ideia do Paulo Mendes Campos. Na editora Ática, em 2001, coloquei a frase na boca de todos os funcionários do editorial na época. Essa crônica fez muito sucesso entre meus colegas de trabalho, tanto que frequentemente alguém das antigas me pede para enviá-la. Quando muito, virou o registro de uma certa época, em que o “espírito corporativo” ainda não havia invadido o ambiente das editoras.
Algum tempo depois, apliquei a brincadeira também à minha turma de jornalismo da faculdade, incluindo os professores. O sucesso foi o mesmo, com alguns alunos fazendo questão de criar a frase dos amigos que lhe eram mais próximos. Outro dia, vasculhando o Google, encontrei o arquivo com essas frases lá, arquivo que eu próprio havia perdido.
Minha ideia agora, ao querer transformar a brincadeira em livro, era atualizar a crônica imaginando como cada personalidade do meu tempo diria a frase do escritor francês. No período em que me entusiasmei com a ideia, fui atrás dos direitos autorais da crônica, coisa sempre complicada. Paulo Mendes Campos faleceu nos anos 1990 e suas crônicas são publicadas por várias editoras. Sem contar que, de certo modo, a ideia original é do autor da crônica, não minha. Eu teria de negociar esse item com a família do cronista, o que por vezes pode ser também complicado. Com o tempo, abandonei a ideia. Não sem antes rabiscar uns esboços, que aqui reproduzo, com a indicação das personalidades que imaginei proferindo a famigerada frase. São, de certa forma, o embrião abortado de um livro não escrito, ou a semente abandonada de um fruto que não vingou:
Faustão: “Ô loco, meu! Não é que a marquesa saiu mesmo! Não, volta esse vídeo! Meu! Olha o tamanho da buzanfa da marquesa! Pra sair assim às cinco horas é só pra enfiar o pé na jaca mesmo!”
Silvio Santos: “Mas... hahai... Maria, vem cá, Maria... Oooi! Tá nervosa, Maria? Não tá nervosa? Então responda, Maria, valendo um milhão de reais: a que horas saiu a marquesa, Maria? Vamos lá, Maria, tem dez segundos pra responder. Às quatro? A marquesa saiu às quatro horas? Silêncio no auditório! Tem certeza, Maria? Posso tirar a resposta? Oooooi... A resposta está e....rrada!”
Zagalo: “A marquesa saiu às cinco e chegou ao Maracanã às oito da noite. É só fazer a conta: cinco mais oito dá treze. Tô falando! É Brasil na cabeça!”
Marília Gabriela: “Mas, vem cá, me explica direito, como é que se convive com isso? De repente a marquesa sai às cinco e tudo bem? É isso que não entra na minha cabeça!”
Jô Soares: “Sem querer interromper, e já interrompendo, vamos ver o vídeo da marquesa saindo às cinco horas... Willy, tá no ponto? ... Que maraviiiilha!”
Novela das oito:
“ ‘- João Estêvão, eu tenho uma revelação a fazer!’
‘Fale, Ingrid. Você sabe que eu detesto rodeios...’
‘É tão difícil pra mim...’
‘Seja o que for, fale, Ingrid. Não deve existir segredos entre nós.’
‘-É que...’
‘Por favor, Ingrid, fale!’
‘... a marquesa...’
‘Por tudo o que é mais sagrado, o que é que tem a marquesa...’
‘... me perdoe, João Estêvão... a marquesa saiu às cinco horas...’
‘O quê!!!’ ”

sábado, 10 de dezembro de 2011

A paixão, esta pantera - crônica

Para Nathália Furiati

Uma antiga colega de trabalho, com quem às vezes pegava carona e a quem confidenciava minhas poucas mas sempre complicadas incursões no campo amoroso, costumava dizer que, comigo, se fosse tudo certinho, não teria graça. Eu respondia que não era eu quem procurava as situações insólitas em que me metia, as coisas simplesmente aconteciam. E se esta explicação não parecia plausível – e desconfio mesmo que não parecesse –, eu respondia por fim que, afinal, não temos controle sobre nossas paixões. Pelo contrário, elas é que nos controlam. Quando a paixão nos atinge, não importa o lugar, o dia, a hora, a cotação do dólar, se está frio ou calor – você simplesmente embarca, para o bem e para o mal.
Minha amiga, pisciana vocacionada, não aceitava a minha generalização. Retrucava dizendo que uma afirmação como esta só poderia sair da cabeça de um libriano como eu. Os librianos – ela enfatizava – vivem em “estado segundo”, uma maneira cabalística de dizer que nos apaixonamos como quem pega uma gripe. Com o adendo de que, no meu caso, além da paixão contumaz, eu sempre trilho caminhos tortuosos.
De fato, amores impossíveis, ou com grandes obstáculos no caminho, há algum tempo viraram a minha sina. Não queria que fosse assim. Mas é. E de tanto viver essas paixões inviáveis, criei uma espécie de curiosidade obsessiva por casos de amor em que há grande dificuldade para que a paixão seja consumada. Desde Shakespeare e até antes dele, a ficção está repleta de amores impossíveis. É disso, aliás, que vivem em parte o cinema e a literatura. A figura do anti-herói, contra o qual tudo parece conspirar – a distância, a etnia, a cor da pele, a idade, o status social, o repúdio da família – para que, no final, ele supere os obstáculos e termine junto de sua amada, é o mote que não pode faltar a qualquer história, mesmo que não seja romântica.
Mas é nas histórias verídicas que mais me comprazo ou me consolo. Há casos e casos, mas gosto de citar três. A ex-modelo e colunista Danuza Leão conheceu o jornalista Samuel Wainer na prisão, ele com 41 anos, ela com 19. Danuza foi visitá-lo por mero acaso junto com um amigo e saiu de lá apaixonada. Assim que o jornalista deixou a prisão, meses depois, casaram-se e tiveram três filhos.
O cavaleiro Doda Miranda foi acusado de se aproximar da milionária Atina Onassis somente por causa de sua fortuna. Doda sofreu muito com os comentários da imprensa e de amigos assim que o romance se tornou público e se defendia dizendo que qualquer pessoa que se aproximasse de Atina, mesmo por amizade, seria acusada de estar de olho em sua fortuna. Ele sabia o que dizia. Estava tão somente apaixonado, pouco se lixando para a fortuna que Atina herdara do pai. O tempo passou. Doda e Atina estão casados até hoje e nem a imprensa nem os amigos tocam mais no assunto.
Por fim, o caso mais explosivo. Em 1992, a então mulher do cineasta Woddy Allen, a atriz Mia Farrow – eles eram casados, mas não moravam juntos – encontrou no apartamento do diretor várias fotos da filha adotiva de Farrow, Soon-Yi, de 18 anos, nua na cama de Allen. A atriz tornou o caso um escândalo mundial, a imagem de Woody Allen, então com 57 anos, foi consideravelmente arranhada, o diretor de A rosa púrpura do Cairo perdeu a causa na justiça, mas no fim prevaleceu o sentimento que ligava Allen à garota: uma paixão incontrolável. Eles se casaram em 1998 – ela com 25 anos, ele com 63 –, adotaram duas garotas e vivem juntos até hoje, sendo considerados um dos casais mais discretos do jet set. Discretos e apaixonados. Recentemente flagrados numa exposição de Pablo Picasso em Paris, Woody Allen afirmou que pretende passar o resto de sua vida ao lado de Soon-Yi.
Não diria que os personagens desses três casos estivessem atrás de histórias tortuosas. Acontece que a paixão, esta pantera, é uma força poderosa.

domingo, 27 de novembro de 2011

Fantasmas - crônica

Quando ficamos mais velhos, os fantasmas começam a aparecer. Fantasmas do bem e fantasmas do mal, sem que vá aqui qualquer juízo de valor. Quando se entra na chamada idade provecta, tanto os fantasmas do bem como os do mal são bem vindos.
Não preciso esclarecer que em geral aparecem em sonhos, em curtas metragens sem o menor sentido, mas que, a gente sabe, guardam um sentido coeso em sua aparente falta de nexo. Os diretores desses curtas, se é que são dirigidos, parecem cultivar uma predileção natural pelo surrealismo e pelo nonsense, afinal, trata-se de sonhos. E quem disse que o surrealismo e o nonsense não nos dizem mais coisas do que o realismo e o naturalismo?
Outro dia acordei assustado e emocionado. Havia sonhado com uma conversa na cozinha da minha casa de infância, como muitas que presenciei em menino. Estavam ali gente viva e gente morta. Gente de um passado remotíssimo e gente do meu dia a dia atual. E – talvez o que mais me tenha emocionado no sonho –, gente que não se conheceu.
Estavam ali, por exemplo, minha mãe, que faleceu em 1985, e minha filha, nascida em 1989. Não digo que as duas conversassem durante aquela nebulosa aparição, na cozinha de azulejos azuis e cerâmicas vermelhas que meu pai mandou colocar com o dinheiro de sua aposentadoria, em 1973. Não, elas não conversavam. Minha filha ainda era a garotinha ligada no 220 que corria pela casa. E minha mãe, a mulher de olhar atormentado pelo câncer que a levaria, uma das imagens que me ficou dela. Mas só de imaginá-las juntas, no mesmo ambiente, com outros convivas que por vários descaminhos do destino jamais poderiam estar juntas, só isso já valeu a emoção que me percorreu do coração às têmporas.
Na manhã do dia em que tive esse sonho, enquanto sorvia o café e mastigava o pão com manteiga num balcão anônimo de padaria, agradeci a esse imaginário diretor pelo script da madrugada. Me fez acreditar, ainda que por minutos (a gente nunca sabe a extensão de um sonho), que a vida vale pelo que vivemos. Pelo que foi e pelo que poderia ter sido.

sábado, 6 de agosto de 2011

Saio da Ática para entrar na história - crônica em dois atos

Primeiro ato.
Duas semanas antes de você ser demitido, lhe oferecem um “desafio”, como gostam de dizer. Dizem que é a sua grande oportunidade. Que você é “um cara competente”. Que “possui repertório”. O “homem multimídia do editorial”. Que é “um cara legal”. Enfim, a pessoa talhada para aquele desafio. Antes de deixar a sala, elas o abraçam. “Boa sorte”, diz uma. “Vai dar tudo certo”, diz a outra. Agora você precisa conversar com sua futura gestora, inteirar-se da mudança.
Você, um funcionário dedicado, sai da sala e vai pegar um café para tragar direito o que acabou de ouvir. Tenta se contaminar do entusiasmo das suas superiores, mas no fundo mantém uma providencial reserva. Sabe como as coisas funcionam por ali. Está há catorze anos sem uma promoção. Culpa sua, decerto. Em vez de fazer conchavos, de se esmerar na arte da bajulação, de se fazer onipresente na sala das chefias, você se preocupava tão somente em fazer bem o seu trabalho.
Você toma o café, passa no toillet e vai conversar com sua futura chefe. É uma mulher afável, e você se sente à vontade para fazer a pergunta que não quer calar em sua mente. A mudança envolve promoção? Envolve aumento de salário? Não, não envolve, ela diz. Envolve o quê, então? Ela então explica o que a mudança envolve.
A mudança consiste em transferir-se do quinto andar, onde você tem o seu ambiente, para o terceiro, um andar inóspito para você, repleto de gente de nariz empinado, que tem o péssimo hábito de não cumprimentar e adora dizer que foi ao show do U2, mas nunca leu Machado de Assis. Que adora usar palavras como viral, vibe, expertise, mas escreve coisas como “ancioso” ou “isso não tem nada haver”. Uma fauna humana com interesses bem diferentes dos seus e uma visão de mundo bem diferente da sua.
Você projeta o seu dia a dia entre aquelas criaturas. Sua autoestima não teria a menor chance. Em semanas você se sentiria um ser do pré-cambriano, para dizer o mínimo, remoendo sentimentos nada auspiciosos em sua alma.
A mudança consiste também em ser mandado por pessoas que têm menos experiência editorial do que você. Você até imaginou que, depois de tantos anos editando gente do calibre de Marilena Chaui e Gilberto Dimenstein, autores top da editora, você ao menos fosse coordenar alguma coisa. Mas não. Você não coordenará coisa alguma. Sentará numa mesa de costas para a sua chefe e terá pela frente uma produção irreal de 120 livros num prazo exíguo.
Você agrega mais esse dado ao seu rol de informações e por fim vai se aconselhar com funcionários que conhecem bem o setor para onde querem mandar você. Todos dizem a mesma coisa: “Não vá. Ali o cenário é instável e insano. As pessoas vivem querendo se jogar do viaduto”. Você se assusta. O dia termina e você vai para casa tentando se convencer de que, não obstante o que lhe dizem, vai tirar de letra. Afinal, você é um cara competente. Um cara legal. Possui repertório. O homem multimídia do editorial.
Enfim, amanhece. Nada como um dia após o outro com uma noite no meio. Tudo bem que não foi uma noite tranquila. Você acordou várias vezes de madrugada. Sentiu o coração acelerado ao lembrar que suas superiores aguardam sua confirmação. Mas agora você está na padaria de costume e toma o seu café com a alma apaziguada. Traz uma decisão dentro de si. Uma decisão que redime seu espírito e devolve a dignidade que você supunha em cacos. Quita suas pendências de orgulho próprio, suas inquietações profissionais perante você mesmo.
Você chega cedo ao trabalho. Vai até a sala da sua chefe e, diplomaticamente, diz que não aceita o que lhe foi proposto. Está bem onde está e não se sentiria bem no outro departamento. Duas semanas depois, você é demitido.
Segundo ato.
Esta crônica não é uma lavagem de roupa suja nem uma forma de remoer rancores. Estou bem e me sinto grato pelos dezessete anos passados numa das editoras de ponta do país. Ali concluí uma graduação e uma pós-graduação, pude dar à minha filha bons colégios e uma vida digna à família. Ali escrevi cinco livros e editei vários. E ali aprendi muito e fiz muitos amigos. A demissão de um emprego faz parte da vida, como a doença e a morte. Como também fazem parte da vida a alegria, a compaixão, a gratidão, o encontro, a epifania, a comunhão, a arte, a música, a literatura, o cinema, a alteridade, a amizade, o amor.
Quem me conhece sabe que, nos momentos limites, sempre fiz terapia com as palavras. Em 1998, ao me saber hiv positivo, escrevi um relato autobiográfico sobre o que é viver nessa condição. Um livro que foi bem adotado nas escolas e me permitiu conhecer um pouco do Brasil. Entre 2005 e 2009, em outro relato visceral, expus os tabus e preconceitos que cercavam uma relação amorosa em razão do hiv e da diferença de idades. Coragem nunca me faltou. Nem lucidez. Não poderia agora deixar de fazer mais uma terapia, dessa vez na forma de crônica, para assimilar melhor este momento de transição.
Meu caminho está nas palavras. Há alguns meses, já tinha resolvido me dedicar aos livros juvenis. Nada de livros polêmicos ou de escrever novamente sobre Aids, mas escrever para o público juvenil, com o qual tanto me identifico. Preciso de oxigênio. Sempre me vi como um menino, no melhor sentido que Fernando Sabino dava a essa palavra. “O menino é o pai do homem”.
Um novo emprego decerto virá, e eu me dedicarei a ele com o mesmo afinco com que me dediquei ao anterior. Mas o hábito da escrita regular veio para ficar. Escrever para jovens em idade de formação sempre me fez bem. Acho que, bem ou mal, é o que sei fazer de melhor. Aquilo que me dá mais prazer. Parodiando Getúlio Vargas, em sua carta testamento, saio da Ática para entrar na história. História em minúscula, no meu caso. Ou em caixa baixa, como se diz no editorial. Romances juvenis recheados de peripécias, aventuras, mistérios e saborosas descobertas.
Está tudo certo.
Samir, 4 de agosto de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

trecho de "Todo menino é um rei"

"Assim que começamos a caminhar, lentamente como costuma ser num enterro, os pais da Corina foram se distanciando até ficar uns três metros na nossa frente. Ou nós é que fomos nos deixando ficar para trás. Me fez bem imaginar essa hipótese. O único problema é que o Marcelo também acompanhou nosso ritmo e ficou para trás junto com a gente. Logo percebi que aquele moleque com cara de sonso era mais esperto do que eu pensava.
O negócio agora era prolongar a conversa. Eu já procurava um assunto, quando ouvi a Corina dizer:
– Nunca tinha vindo nesse cemitério.
Não era o assunto que eu tinha pensado, mas estava valendo.
– E eu nunca entrei num – eu disse.
E não estava mentindo. Cemitério eu só conhecia dos filmes de terror. Não gostava nem de passar em frente. Nunca me esqueço do tremor que senti no dia em que um vendedor passou de porta em porta na minha rua oferecendo jazigos a prestação.
– Sério? – Corina pareceu se espantar. – Pois eu estive num cemitério uma única vez, há três anos. Foi no enterro do meu avô.
Eu me lembrava do velório do avô dela, seu Miguel, pai da dona Dirce. Foi um acontecimento muito comentado no bairro. Seu Miguel era militar. Diziam que tinha torturado presos políticos uns anos atrás. Eu não entendia bem o que isso significava. A única coisa que sabia era que seu Miguel era uma pessoa temida e respeitada nas redondezas. Mais até do que o Tito, que tinha uma fama mais ou menos parecida.
Naquele dia, quando cheguei em casa com a notícia da morte do seu Miguel, minha mãe disse uma coisa que não era muito comum ouvir dela:
– Esse vai pro inferno de cabeça pra baixo.
– O quê? – perguntei, pois tinha gostado da frase e queria que ela a repetisse.
– Nada, não, menino... Vai brincar, vai!
Muito tempo depois, comentei com meus pais sobre o que falavam do Tito e do seu Miguel na rua. Perguntei se era verdade. Meus pais nada responderam. Apenas disseram para eu nunca comentar sobre aquilo com ninguém.
No dia em que disseram isso, não deixei de perceber um certo medo neles. Um medo misterioso de alguma coisa que eu não sabia o que era, mas que me pareceu algo grave. E se eles me pediram para não falar com ninguém sobre o assunto, não seria com a Corina que eu iria falar daquilo naquele momento.
– Eu fui no velório do seu avô, mas não ao enterro – falei apenas.
– Tenho saudades dele – Corina disse de repente, quase como se falasse apenas consigo mesma. – Quando ia na casa dele, ele me levava na padaria e deixava escolher os doces que quisesse.
O assunto não era dos mais animadores. Pelo menos pra mim. Mas eu não podia demonstrar isso.
– Ele morreu do quê?
– Do coração. Teve um ataque fulminante durante o sono. Morreu dormindo.
– Bom, pelo menos não sofreu.
– Não, pelo menos isso – ela disse, depois deu um suspiro. – Ele morreu em paz.
Quando ela disse isso, voltei a pensar nas coisas que falavam de seu Miguel. Será que a Corina sabia dos horrores que falavam do seu avô? Fiquei tentado a perguntar, mas por fim segui o conselho dos meus pais e não disse nada. Acho que fiz bem."

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Semana de trote

Março de 2003. Início do ano letivo na faculdade Cásper Líbero. Segunda-feira. Os corredores estão movimentados. Os alunos se reencontram depois de quase três meses de férias. Trazem os semblantes leves, livres da preocupação com trabalhos, provas e seminários. O clima é de confraternização. Há uma profusão de beijos, abraços e olhares ávidos de novidades. Grupos se formam e se desfazem como por geração espontânea. O cheiro de cigarro impregna o ar do corredor.
Estamos na semana de trote. As aulas deviam ter começado há uma semana. Mas no Brasil, como em muitos países, é sagrado: os primeiros dias de aula são reservados à recepção dos chamados “bixos”. A diretoria tolera. Os professores respeitam. Os próprios bixos aceitam o trote como um rito de passagem necessário. Os cabelos raspados de improviso nos corredores da faculdade parecem conferir a eles o mesmo status que o primeiro beijo, o primeiro namorado ou namorada, o primeiro carro, a perda da virgindade, o primeiro emprego. Com o direito garantido a, no ano seguinte, na condição de veteranos, poderem aplicar as mesmas humilhações nos bixos que chegarem.
De onde estou, observo tudo com reserva. Além do caderno de 200 páginas com ilustrações do Dilbert, que uso desde o primeiro ano, trago comigo o livro do Elio Gaspari, A ditadura envergonhada, que peguei na biblioteca. Todos que me cumprimentam, ao reconhecerem a capa azul do primeiro volume, fazem referência à obra:
– Legal, você está lendo?
– Esse livro parece ser bom, não?
Faço que sim com a cabeça, embora ache o livro um pouco chato – uma enfiada de nomes de generais e de patentes militares, assunto pouco palatável. Mas concordo que é preciso saber como eles se articularam para atarantar por mais de duas décadas nossa já atarantada vida republicana.
Felipe me conta que lera os dois volumes nas férias. Jaime diz que pretende lê-lo em breve. Adriana também, assim que terminar um livro do Caco Barcelos. Sidney, por sua vez, mostra com entusiasmo a alentada biografia de Kurt Cobain que está devorando. Faço cara de conteúdo. Não sou muito versado em Nirvana. Meu último ídolo do rock foi Freddy Mercury. Devo estar defasado de há pelo menos uma década em matéria de rock. Mesmo assim, congratulo-o pela leitura. Biografias estão entre os meus gêneros preferidos.
Sou aluno do 2º JO D. Quero dizer, do segundo ano de jornalismo, turma D. Agora, um veterano. Mas, para mim, todo aquele ritual a que assisto entre curioso e contido não faz muito sentido. Não entendo muito quando Klinger e André Tadao, meus colegas de turma, dão ordens aos bixos para que formem um fila no corredor. Minha confusão aumenta ao verificar que os bixos obedecem, submissos como gados em direção ao matadouro. Em seguida, Klinger e Tadao ordenam que eles se movimentem e caminhem em fila indiana rumo do saguão de entrada. E os bixos se precipitam incontinenti. Garotos e garotas de classe média, instruídos, inteligentes, sacados, vão andando como prisioneiros de guerra, tangidos pela voz de comando de Klinger e de Tadao, um Tadao diferente do japonês caladão que conheço das aulas. Em segundos todos somem no saguão e logo estarão na Avenida Paulista, onde farão pedágio nos faróis.
Não é que eu não entenda a liturgia do trote. Compreendo que, para o veterano que já foi bixo, e principalmente para o próprio bixo, trata-se de uma etapa da vida que se inaugura. E que merece ser celebrada de todas as formas possíveis e ao alcance da fértil imaginação juvenil. Entendo a carga de adrenalina que esse momento comporta. Ou pelo menos tento entender que, para um veterano, naquele momento, esse rito é tão essencial quanto o ar que ele respira. Ainda que cenas de trote sempre me façam lembrar do calouro de medicina que morreu afogado na piscina da USP durante uma festa de recepção aos novatos, anos atrás. Aquele episódio ficou marcado como o extremo de estupidez a que esse tipo de celebração pode chegar.
O motivo da minha reserva diante de toda aquela agitação, no entanto, tem outra razão. Não pertenço à geração de Klinger e Tadao. Eles devem ter entre 18 e 19 anos. São recém-egressos do ensino médio, como a maioria dos alunos da minha turma. Pertencem à safra de universitários que já nasceu com bits e bytes em seu DNA. A geração saúde, para a qual o uso da camisinha se erige tão natural quanto vestir a cueca ou a calcinha depois do banho. A geração politicamente correta, para a qual, salvo exceções, constitui grave heresia transgredir as regras, desrespeitar minorias, embora possuam suas próprias regras de transgressão. Vão à parada gay sem serem homossexuais. Votam no Lula sem rezar pela cartilha de Marx. Participam da passeata pela paz por honra da firma, apenas porque é in bradar na Avenida Paulista pela paz. Cultivam o espírito gregário, no qual é quase uma ofensa se destacar ou criar conflitos.
Quanto a mim, tenho 40 anos. Nunca rasparam o meu cabelo por ter passado em vestibular na vida. Nunca fiquei nos faróis cobrando pedágio dos motoristas. Não pintaram meu rosto com o nome do curso ou da faculdade. Nunca fiz parte do primeiro time da sala em qualquer curso da minha atribulada vida escolar – minha timidez e minha inépcia para qualquer tipo de liderança jamais permitiram. Sou o estranho no ninho. Quase um intruso. Minha folha corrida inclui um casamento de 18 anos, uma filha de 14, dois anos no curso de Letras na USP, um emprego de editor numa editora de São Paulo e quatro livros publicados, o mais rumoroso deles um relato autobiográfico sobre a minha experiência como portador do vírus da Aids.
Não é difícil concluir que existem mais mistérios entre mim e a geração de Klinger e Tadao do que a vã diferença de idades. Há um hiato abissal de vivências entre nós. Uma diferença de espírito de época. Tive a idade deles na década de 1980, a famigerada década perdida. Vivi ecos de 1968, da contracultura. Fui atingido pelos estilhaços dos anos de chumbo da ditadura militar. Nesse período, os punks dominavam a cena musical. A guerra fria ainda respirava. Ter atitudes radicais era um ato bem visto. Os códigos eram outros.
No dia seguinte, terça-feira, lá estão eles novamente, Klinger e Tadao, dando ordens aos bixos, como se fossem dois generais linha-duras dos livros do Elio Gaspari. E lá estão também os bixos, prontos a recebê-las. Só que dessa vez meus colegas de turma querem fazer diferente. Dado o meu ar provecto, pedem que eu entre na sala dos novatos e me apresente como professor ad hoc. Reluto.
– Ninguém vai desconfiar – insiste Klinger.
– Pô, Samir, você tem pique de professor – incentiva Jonas.
– Entra lá e diz que você é o Arbex – pede Jaime de modo maroto, fazendo referência ao professor José Arbex Jr., um dos mais conceituados e controvertidos da faculdade.
Nem parece que Jayme é médico, que tem 36 anos e que já foi casado. Depois de mim, é o mais velho da turma. Mas um dos mais traquinas e inquietos em sala. Somos praticamente da mesma geração.
Meu recato, no entanto, me impede de participar da brincadeira. Os alunos até forçam a barra, chegam a me apresentar como o professor Samir, que vai dar aulas de português. Cogito de entrar no jogo, mas volto atrás. Não me vejo representando aquele papel. Mesmo com muitos bixos já me olhando com a reverência com que se olha para um professor, o que me deixa bastante encabulado. Por uma fração de segundos, tenho a impressão de que, se entrasse na sala, me apresentasse como o professor de português e escrevesse na lousa uma extensa lista de livros que os alunos devessem comprar ao longo do ano, eles a copiariam em seus cadernos sem questionar nada.
Naquele dia, restrinjo-me a conversar na cantina, colocar as novidades em dia, me inteirar das novas matérias e dos novos horários. Depois, vamos todos para o Puppy, o bar em que a moçada costuma se reunir – e do qual não gosto, prefiro o Café Creme ou o Prainha Paulista. Todos, quero dizer: o Jaime, o Sidney, a Adriana, o Diego, a Nádia, o Fini, o Felipe, a Renata, o Jonas – meio que o pessoal mais próximo, aqueles com quem mais converso, só faltaram a Flávia e a Eliane.
A conversa flui relaxada e informal. Nada de grandes temas. Fazemos planos de assistir a alguns filmes – planos que no primeiro ano tinham ficado só na promessa. De nossa mesa, assistimos à cena mais comum naqueles dias: uma turma de bixos ser feita de gato-sapato na mesa ao lado por veteranos sedentos de sangue. Definitivamente, não está em mim aquilo. Mas fico pensando. Não descarto a idéia de fazer um tour de force e participar da farsa da sala de aula no ano seguinte. Quem sabe? Era um trote até que espirituoso.
(Texto escrito em março de 2003)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Da natureza do filho da puta (conto - abril de 2001)

Prometi que ligaria para o noivo dela e contaria tudo. Deixei o recado de manhã cedinho na caixa postal do seu celular. Fui curto e grosso: “seu noivinho vai saber quem você é”. Depois fui tomar banho. Tinha um dia duro pela frente.
Não me considero um cara do mal. No cinema, costumo chorar, e sempre dou caixinhas generosas a garçons, frentistas e flanelinhas. Só fiz mal a quem foi filho da puta comigo. Ou com quem é filho da puta por natureza. Sujeitos que já nascem com má índole. Sacanas. Pústulas. Biltres. Pelintras. Essa corja eu não perdoo.
Mas ela não. As coisas aconteceram de um modo cruel para nós, e eu não deixei de me sentir traído pela forma como tudo terminou. Mas daí a considerá-la filha da puta ia uma enorme distância.
Quando desliguei o chuveiro, já sabia que não cumpriria minha nociva promessa. Me vesti, penteei o cabelo, limpei a lente dos óculos, aspergi desodorante. Gosto da sensação de catarse que o desodorante proporciona, como se me purificasse das mais inconfessáveis transgressões. Tomei café com o espírito apaziguado, embora me doessem algumas lembranças.
No metrô, fui ruminando pensamentos. Tudo tinha ocorrido por culpa minha, eu tinha a decência de fazer esse mea culpa. Se não houvesse cedido aos seus encantos quando ela me assediou na sala de aula onde a conheci, nada daquilo teria acontecido.
Uma amiga pressagiou o perigo que me rondava. “Toma cuidado”, ela me advertiu, “que essas garotas costumam deixar o cara apaixonado e depois caem fora na maior”.
Sem dúvida que era um conselho sensato. Mas eu já me encontrava por demais envolvido com a ninfeta, e as palavras da minha amiga serviram apenas para que eu me sentisse mais desafiado a contrariar seus sábios augúrios.
Em vez disso, uma reflexão involuntária começou a fazer eco na minha mente. A mente humana é uma coisa extraordinária. Quando concentramos o pensamento em algo, não temos noção do grau de detalhe a que podemos descer.
Eu me via agora dominado por uma obsessão que me acenava como um insólito alento. Comecei a relacionar mentalmente os filhos da puta com quem já tivera contato na vida. Crápulas, velhacos, pulhas, calhordas. É óbvio que, para isso, eu teria de estabelecer um critério. Não queria cometer o pecado da generalização.
Saí da estação com o meu plano já traçado na mente e fui agregando detalhes. Assim que chegasse à empresa, faria um esboço, para não perder a essência da ideia. Porque era uma ideia tão sutil e de contornos tão débeis, que qualquer descuido causaria uma perda irreversível na fidelidade de sua concepção.
Esse interesse repentino pelos filhos da puta fez com que me esquecesse por completo do que fizera pela manhã. Sou muito impetuoso quando assaltado por uma ideia que julgo espirituosa. E muito obtuso também. Penso que os grandes gênios da ciência, ao conceberem seus inventos, foram movidos por ímpetos semelhantes ao que me tomava naquela manhã. Imagino Tomas Edison ao sentir em si o germe da ideia da lâmpada. Einstein, ao receber o insight da relatividade. Arquimedes, no instante em que gritou "eureka!". De modo que foi com sobressalto que, ao atender o telefone, ouvi a voz cheia de ira da minha ex-namorada perguntando se eu teria coragem de fazer aquilo.
Demorei a entender a que ela se referia. Mas logo me lembrei do recado que deixara em sua caixa postal e no ato me recompus. Sou muito pragmático quando quero.
Resolvi valorizar minha derrota e disse-lhe que sim, que iria ligar para o noivo dela e dizer que nós tivéramos um tórrido caso de amor.
Ao ouvir isso, a ira dela multiplicou-se. Me chamou de covarde, disse que eu não era homem e que agora sim eu revelava a minha verdadeira face.
Eu não estava interessado na opinião dela sobre mim, agora que tudo tinha acabado. Além disso, estava inteiramente voltado para o rascunho que já começara a fazer dos mequetrefes que conhecera em vida. Pedi a ela que me ligasse na hora do almoço, ao meio-dia.
Não sei se foi o sobressalto por ouvir sua voz, ou a expectativa para a conversa que teríamos mais tarde. A esperança é traiçoeira. Dá-nos ilusões muitas vezes falsas sobre fatos que já estão definidos no plano das intenções. Eu já estava com o meu destino selado e não sabia. E a obsessão com que me entregara àquele esdrúxulo exercício mental de relacionar os patifes e os infames nada mais era do que um sintoma de que no fundo tinha consciência de que havia me transformado na ponta prejudicada daquele triângulo amoroso.
Sei que, depois que desliguei o telefone, não consegui mais dar com o sentido da ideia que me assaltara no metrô. Que se fodessem os filhos da puta!, era o que eu pensava agora. Com que intuito iria relacioná-los numa folha de papel?
Trabalhei em harmonia aquela manhã. Minha produção foi boa.
Ao meio-dia ela ligou. Ainda estava furiosa, mas primeiro queria me ouvir. Então eu lhe disse que ficasse tranquila: eu não iria ligar para o noivo dela. Ela bem que merecia, mas eu não iria fazer isso. Não prejudicaria a vida dela, nem a dele (e nem a minha, mas isso eu não falei para ela). Pois eu podia ser tudo, arrematei, mas se tinha uma coisa que eu não era, era um filho da puta.
Ela ouviu tudo calada, e pude perceber seu alívio com a minha atitude. E, antes de desligar, em tom conciliador, disse que sabia que eu não faria nada daquilo. Que sabia que eu não era um filho da puta.
Sem ter mais o que conversar, nos despedimos. Desejei a ela paz em sua vida. Ela retribuiu, dizendo que desejava o mesmo para mim. Foi a última vez que conversamos. Depois fui almoçar, que eu vinha me alimentando muito mal ultimamente.

terça-feira, 8 de março de 2011

Funduras - conto (c.1987)

Eu só pude entendê-la por completo quando a vi no caixão, o rosto duro, as narinas atochadas de algodão, os olhos bistrados, como a censurar-me por não tê-la amado como devia em vida, um fio de sangue, pálido feito mostarda aguada, a escorrer pelo canto da boca, a pele calcinada, as unhas roxas. Em torno, fantasmas. Era de manhã.
Depois que o corpo desceu ao jazigo e a sepultura foi chumbada, espantei-me com a alegria que as sobras da manhã me prometiam, apesar de. Saí caminhando sozinho, deixei os fantasmas para trás e percorri toda a calçada de muro branco do cemitério. Depois de tudo, o que mais queria era andar.
O vento que soprava era um acinte. Roçava-me o rosto, arrastava pensamentos, lembranças, como se fossem correntes. Os pardais aterrissavam em bando na fronde das árvores esquálidas. Um sol já alto me aquecia. Ciganear pelas ruas do bairro desconhecido.
Por muito tempo não quis encontrar gente, deparar rostos. Procurei as ruas mais desertas, as vilas mais recônditas, viadutos sujos e anônimos, até chegar a uma praça, o mato crescendo entre as frestas no cimentado, formigas alheias a tudo. Perdi a noção das horas. Espraiar o olhar e não pensar em nada.
Não sei quanto tempo ali sentado, pensando nela, agora envolvida no mistério. Estranho como tudo mudou, e o que antes era, agora não é, e o que antes parecia, agora não parece. Podíamos ter sido, não fomos. Podíamos ter feito, não fizemos. Podíamos ter vivido, não vivemos. Nunca mais a esperança de viver o que nunca vivemos.
Fazia calor e as sobras da manhã iam se esmaecendo. A vida acordava aos poucos. Era preciso acordar o resto de vida em mim. Pensar cores brancas, a cal das paredes, a luz do sol entrando pela fresta da memória, risadas soltas, gargalhadas, uma frase que ficou para sempre, outra que se perdeu, preciosa, passos na rua numa noite fria, uma reza, o desvelo à noite no escuro do quarto, uma esperança perdida, o corpo branco estirado no corredor, iluminado de juventude e do sol que batia, a vida, a vida.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A senhorinha da livraria (crônica - janeiro 2011)

Já experimentei os mais díspares sentimentos em relação a ela: raiva, piedade, irritação, exaspero. Atualmente ando na fase da complacência e espero que este seja o definitivo.
Acontece sempre: mal ponho os pés na livraria e já pressinto seu vulto caminhando na minha direção. Reconheço aquele vulto pelos passos claudicantes, ritmados pela picada de sua bengala contra o chão.
Sou um frequentador chato de livraria. Quase nunca tenho em mente um livro para comprar. Mas raramente deixo a livraria sem um exemplar debaixo do braço. Gosto de assuntar aleatoriamente o que está exposto. Folhear, verificar tradutor, projeto gráfico, capa, tamanho da letra. Gosto sobretudo de ser surpreendido com aquele romance que procurava há décadas oferecido a preço módico. Ela, contudo, parece não entender minhas peculiaridades. Se aproxima e lança a pergunta que me faz há pelo menos quatro anos:
– Já encontrou o livro que procura, senhor?
– Obrigado, estou dando uma olhada geral – é a minha resposta de algibeira, dada também há pelo menos quatro anos.
Não é possível que já não tenha gravado minha fisionomia. O hábito, porém, é mais forte que ela. Já ocorreu de, no mesmo dia, ela esquecer que já havia me abordado e me interpelar novamente, com o mesmo ar respeitoso e simpático.
Minha resposta não é de todo insincera. Tampouco indelicada. Mas também não é uma resposta precisa. “Dar uma olhada geral” é uma expressão distante do caráter de ritual que confiro às minhas incursões às livrarias. E antes que identifique o sentimento que me toma dessa vez, ela se afasta, deixando no ar a frase com que sempre conclui a abordagem:
– Pois não, fique à vontade.
De vez em quando ela muda o script e arrisca um palpite:
– Já leu este? – diz, pegando o primeiro best seller que vê na prateleira.
– Já sim, muito bom – minto, para não alongar a conversa.
Ela então se afasta, com a clara satisfação do dever cumprido estampada no rosto.
De tanto ouvi-la proferir a mesma pergunta, deduzo que seja uma funcionária de honra da livraria, ou algo que o valha. Deve ter por volta de 80 anos e, pelo modo elegante como se desloca e interpela os clientes, presumo que, por vários anos, tenha sido uma eficiente gerente da loja, dessas que dedicam a vida à empresa – fato cada vez mais raro no mundo de hoje.
Se minhas hipóteses estiverem certas, acho louvável a atitude da livraria. Precisamos de gente humana no atendimento, principalmente em se tratando de livraria. Livro não é um Grill George Foreman, xampu anticaspa ou ração para cachorros, como nos querem fazer crer os diretores de marketing. É um produto simbólico, com repercussão social.
De todo modo, se a simpática senhora mais atrapalha do que ajuda, ao menos é de uma educação irretocável, coisa também cada vez mais rara hoje em dia. Com a vantagem de que fala me olhando nos olhos, não usa de gerundismo, não me chama de “chefe”, “patrão”, “campeão”, “grande” e nem diz que determinado livro é “show de bola”.
Certa feita, num dia de má veneta, ao ser abordado por ela, resolvi desafiá-la.
– Já encontrou o livro que procura, senhor? – ela veio com seu mantra.
– Ainda não – devolvi, com ar maroto. – Estou procurando o novo livro do Nicolau Sevcenko. A senhora sabe em que prateleira posso encontrá-lo?
– O senhor, por favor, fale com a vendedora – ela respondeu, fleumática como uma esfinge grega, apontando uma das atendentes.
Resignei-me, complacente e desarmado, e fui falar com a vendedora.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A arte de não cumprimentar

Numa de suas crônicas, o escritor Antônio Prata maldisse as pessoas que não nos esperam no elevador, deixando-o fechar na nossa cara pelo fortuito prazer de desfrutar por alguns segundos de dois ou três metros quadrados de solidão. O tema, entre tantos outros da vida pós-moderna, parece incomodá-lo.

A mim, que já tive o elevador fechado na cara algumas vezes, essa inexplicável descortesia não chega a incomodar. O que me incomoda são as pessoas que não cumprimentam. Incomodar, aliás, talvez não seja o verbo mais adequado; melhor seria dizer que me causam uma espécie de perplexidade surda. O fato me é tão incompreensível que eu poderia classificar as pessoas de acordo com o modo como não cumprimentam.

O tipo mais comum é aquele que só cumprimenta dependendo das circunstâncias. Por exemplo, quando ele topa com você na saída do elevador ou na esquina de um corredor. Não há como fugir, e o não cumprimento ficaria muito evidente. Então ele solta aquele “tudo bem?” automático, só para não ficar mal no filme.

É o mesmo tipo que, na fila do cinema (principalmente se for um filme da Mostra), ao perceber que você vai assistir à mesma película que ele, finge que não o vê e até procura tornar a coisa natural, olhando acintosamente para todos os lados, inclusive para o seu, para dissimular uma possível distração. Se você o interpelar no dia seguinte, ele se sairá com o indefectível álibi da distração.

Mais esfarrapada do que a desculpa da distração, porém, é a batida alegação de não se enxergar de longe – e nem de perto, por supuesto. Pode até ser, nunca se sabe. Mas em geral você sabe quando a pessoa o viu e disfarçou fingindo que não. É quando o seu olhar bate no fundo do olhar da pessoa e o olhar da pessoa bate no fundo do seu. É coisa de milésimos de segundos. É sutil. É fugidio. Mas você sabe.

Não é incomum, entretanto, que a mesma pessoa que o ignorou no hipermercado ou no Habib´s o cumprimente efusivamente no dia seguinte, no toillet da empresa – o que certamente o deixará desconcertado, cristalizando em sua alma a ideia de que o mundo mudou e você não tem mais elementos para compreendê-lo.

Você sai do toillet atarantado e se perde num emaranhado de conjecturas. As pessoas não têm lógica, você conclui. Umas agem assim porque são tímidas ou inseguras, o que, nestes casos, soa até como atenuante. Outras porque se consideram superiores àqueles aos quais não dirige o olhar, aos quais não estende sequer um meneio de cabeça. Outras, ainda, por questões econômicas, raciais, estéticas, sexuais, políticas, vai saber. Ou senão por aquela antipatia gratuita que, como a gripe, nos acomete a todos, não importa a classe social.

Obviamente que ninguém é obrigado a cumprimentar quem não queira. O cumprimento, no atacado, é um gesto de camaradagem, de identificação; no varejo, um gesto de educação, de civilidade. E admito minha faceta Woody Allen, de neurótico assumido, ou drummondiana, de ser mais um gauche na vida, ao prestar atenção nessas filigranas do cotidiano e ainda escrever sobre elas.

Desconfio, contudo, que nesses tempos de individualismo exacerbado, não se cumprimenta simplesmente porque não se enxerga o outro. Porque o outro só existe na medida em que se precisa de algum favor dele ou quando o outro se interpõe entre nós e nossos planos imediatos. Neste caso, principalmente, não temos saída: seremos obrigados a enxergar o outro. Não para cumprimentá-lo, obviamente, mas para o eliminarmos sem ruídos de consciência, caso ele insista em permancer no nosso caminho

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Lea T.

Gostei muito da entrevista da Lea T., a modelo transexual que é filha do ex-jogador do Atlético MG, Sampdoria, São Paulo e seleção brasileira (copa de 1982), Toninho Cerezzo. Foi bom saber que ela tira de letra o preconceito e, principalmente, sei lá por que motivo, mas há um motivo, por confirmar (eu já tinha lido a respeito em outras publicações) que seu pai a apoia e a aceita.
Eu me lembro que, na década de 1970, quando, garoto ainda, lia avidamente a revista Placar, Toninho Cerezzo surgiu no Atlético de Minas, naquele time fantástico que tinha ainda Reinaldo, Paulo Isidoro, João Leite, Marcelo, etc. Nas excelentes matérias feitas por Placar, li a certa altura uma reportagem sobre o jovem Toninho Cerezzo, o craque das pernas aparentemente descordenadas, mas que já era então um médio volante ágil e ofensivo de rara habilidade (tanto que foi o titular de Telê na Espanha, alguns anos depois). Uma informação me ficou daquela matéria: a de que Toninho Cerezzo era filho de palhaço. Sim, palhaço, palhaço de circo. E que viera de uma família humilde. Hoje, revendo o rumo que sua vida tomou (depois do êxito como jogador, ele atualmente é técnico), e principalmente em vista dessa circunstância que a vida lhe ofereceu, vejo que nem tudo está perdido neste reino de hipocrisia e frivolidade em que se transformou o Brasil (e o mundo). Ainda existem pessoas que, embora humildes de formação, conseguem transpor aquela tênue linha da grandeza e da coragem de assumir a vida como ela é. E de se ancorar em sentimentos verdadeiros, independentemente do que o mundo pense. Li na Veja, há duas semanas, que Cerezzo disse amar seu filho (que para ele continuava a ser "o seu neguinho") não importando se ele fosse homem, mulher ou cachorro. É dessas declarações que compensam tudo de lastimável que lemos diariamente na imprensa a respeito das relações humanas no mundo comtenporâneo.