sábado, 14 de abril de 2012

Paixão de menino - crônica


Corria o segundo semestre de 1980, eu tinha dezesseis anos e era apaixonado pela professora de história. Como não me apaixonaria? Eu era um garoto tímido e estudioso, e a Rosa – Rosinha, como a chamávamos – era uma coisinha pequena e magrinha, tinha um rosto de atriz de cinema francês encimado por cabelos curtos, à rapazinho, possuía uma inteligência acima da média e um charme que me fazia disfarçar que prestava atenção na aula enquanto olhava para ela.
Rosa falava coisas que só causavam alvoroço na minha paixão oculta. Citava Violeta Parra e Mercedes Sosa, comentava as peças do Plínio Marcos e do Augusto Boal, falava de Cortázar, de García Marquez, de Paulo Freire, de Pasolini, de Buñuel e de Godard, tudo o que um garoto como eu, que já tinha decidido se tornar escritor, queria ouvir.
Nessa época eu carregava a crença de que, para me sentir adulto, tinha de beber cerveja e deixar crescer a barba. A cerveja era fácil. Bastava pegar o minguado dinheiro que recebia como office-boy e entrar em qualquer boteco de esquina – naquela época não havia a proibição do álcool para menores. Quanto à barba, eu teria de esperar um pouco, ainda que me esforçasse escanhoando o rosto glabro diariamente com o velho aparelho metálico do meu pai para que a barba crescesse com mais rapidez. Assim, passei a cultivar o hábito de tomar uma cerveja depois do expediente, antes da aula.
Um dia exagerei na dose e cheguei embriagado à escola – as duas primeiras aulas eram de história. Só lembro de ter adentrado a sala de aula, tudo o mais me vem como uma espessa nuvem de lembranças intermitentes. Quando dei por mim, estava deitado numa espécie de maca improvisada, sendo cuidado por ninguém menos do que a professora de história, a Rosinha. Ela dizia alguma coisa que me soava distante, como se eu estivesse num sonho, e algo em seu semblante me passava preocupação com o meu estado. Mas terminava aí a lembrança, impregnada da sensação de bem estar por estar sendo o objeto da exclusiva atenção da minha musa.
Só retomei plenamente a consciência no Hospital Bandeirantes, no bairro da Liberdade, para onde fui levado por um aluno mais velho que tinha carro. Só ali, enquanto tomava glicose na veia, é que me dei conta do vexame que protagonizara. O aluno ainda me levaria em casa, onde cheguei sóbrio, disfarçando o andar ainda trôpego para que meus pais não soubessem do ocorrido. E eles nunca souberam.
No dia seguinte, ao chegar à escola, ainda nos corredores ouvi o relato bem humorado dos alunos. Disseram que abusei de falar bobagens, que gargalhei e chamei a atenção do andar inteiro. E, claro, que regurgitei a porção de fritas que havia ingerido junto com a cerveja. Só não me contaram o principal: que, no meu delírio etílico, eu me declarara várias vezes para a professora, dando pistas inequívocas sobre o motivo do meu porre. Tudo porém ficou na conta de um rito de passagem, o garoto quieto e estudioso (hoje diriam cdf) querendo mostrar que já era adulto.
Aquele episódio me aproximou da Rosinha. Nas aulas seguintes ela passou a me tratar com familiaridade, uma familiaridade quase maternal, com a qual até então eu não estava acostumado. Mas nada além do carinho da professora politizada e sensível pelo aluno que procurava afirmar sua identidade. O que pudesse haver além disso ficava por conta da minha prodigiosa imaginação.
Essa familiaridade fez com que eu criasse coragem e fizesse uma coisa que vinha ensaiando havia dias. Como estávamos no fim do ano e teríamos apenas mais uma semana de aula, resolvi mostrar para a professora um conto que havia escrito, inspirado nos autores russos que vinha lendo. Talvez eu nunca mais fosse vê-la e inconscientemente quisesse deixar algo em sua lembrança um pouco mais digno do que o porre.
Rosinha gostou de saber que eu escrevia. Pegou as três folhas datilografadas, deu uma passada de olhos pelo texto e prometeu que o leria no fim de semana. Um fim de semana que passei com o coração opresso. Minha intenção era impressioná-la. Será que ela iria gostar? Talvez me convidasse para um café fora do ambiente da escola para falar de literatura.
Na segunda-feira, no fim de uma aula sôfrega para mim, em que ela não fez nenhuma menção de ter lido o conto, Rosinha veio até a minha carteira falar comigo. Disse que gostara muito do conto. Que os russos também estavam entre os seus preferidos. Que eu não deveria parar de escrever. E que tinha um autor para me indicar.
Pediu minha caneta emprestada e, na própria folha datilografada, escreveu o nome da obra e do autor: Conversa na Catedral, Mário Vargas Llosa.
– É um romancista peruano – falou. – Você precisa ler.
Olhei aqueles nomes cabalísticos sem questionar. Tudo que vinha da professora de história já trazia a chancela do sagrado. Por fim a aula terminou e nós nos despedimos na porta da sala com um abraço afetuoso. No dia seguinte, corri à biblioteca do Sesc Carmo e procurei o livro do escritor peruano do qual nunca ouvira falar. Lá estava ele, um catatau de quase seiscentas páginas, de capa dura, numa bela edição do Círculo do Livro.
Rosinha nunca soube, mas, inspirado por sua indicação – ou pela paixão que eu nutria por ela –, li Conversa na Catedral em menos de um mês, um tempo recorde para uma romance daquela envergadura e um menino da minha idade. Quando voltaram as aulas, soube que ela tinha se transferido para outra escola. Foi talvez a minha primeira grande frustração na vida amorosa. Por alguns dias circulei desnorteado pelos corredores, alimentando a esperança de rever a professora e poder contar sobre a leitura. Uma leitura que até hoje lembro como uma aula sobre como escrever, com seu jogo caótico de discursos diretos, indiretos e indiretos livres. Uma influência decisiva que nunca mais esqueci, de um escritor que me é muito caro e que venho lendo e relendo ao longo da vida. A funcionária da secretaria, porém, acabou com qualquer esperança que eu pudesse ter: informou que a Rosinha não tinha apenas mudado de escola, mas de cidade. Dava aula no interior agora.
Anos depois, ao escrever meu primeiro romance juvenil, Carpe Diem, dei o nome de Rosinha à professora de história combativa e libertária, mentora intelectual dos meninos detetives do romance. Um mimo de gratidão àquela paixão adolescente não correspondida, cuja memória ainda hoje guardo com a ternura do menino que fui um dia.

domingo, 8 de abril de 2012

Um dia vi Deus num bistrô - crônica


É secular a fama de arrogante da filosofia em oposição à fama de humilde da religião. Remonta, se não me engano, aos primórdios do cristianismo, ocasião em que as duas formas de pensamento puderam finalmente ombrear-se, justapondo seus prós e seus contras – pois antes havia apenas o lógos grego.
Mas, não, não vou entrar na areia movediça da discussão do mérito de uma e de outra modalidade de caminho para a salvação da alma, nesta vida ou em outra. Cada qual com o seu talvez, como dizia uma antiga colega de trabalho. Ainda que eu veja com reservas o ato de se colocar os desígnios da vida nas mãos de um suposto messias, reconheço que o cristianismo tem todo o mérito de ter sido o precursor da defesa da igualdade entre os seres humanos – ideia que seria um dos pilares da Revolução Francesa – e de ter incorporado à história do pensamento ocidental o conceito de livre-arbítrio, pelo qual a virtude deixa de ser algo natural para ser algo que depende da vontade dos homens, ou seja, não há mérito na virtude que não tenha podido escolher entre o bem e o mal. Não é pouca coisa quando se pensa que desses avanços derivam as ideias de democracia irrestrita e dos direitos humanos, impensáveis na pólis grega.
Contudo, neste domingo de Páscoa, não posso me furtar a lembrar a ocasião e as circunstâncias em que li uma das coisas que mais me impressionaram até hoje quando o assunto é a oposição entre religiosidade e pensamento laico.
Era sábado e eu estava num restaurante da Rua Veiga Filho, no bairro de Higienópolis. Era um desses bistrôs que estendem as cadeiras e as mesas até a calçada, ocupando boa parte dela. Fazia um final de manhã abafado, com uma leve brisa redentora vindo nos aliviar de instante a instante. O clima alvissareiro daquele período da semana emprestava ao trecho da rua um ar festivo, tornando o ambiente agradável. Enquanto aguardava meu prato, lia no JT uma entrevista do escritor colombiano Fernando Vallejo, por ocasião de sua vinda à Flip daquele ano.
Lá pelas tantas, uma garotinha maltrapilha, de uns sete ou oito anos, veio vindo pela calçada e entrou no restaurante. Começou a pedir dinheiro ou comida para as pessoas nas mesas. Fixei minhas lentes no movimento da menina e na reação das pessoas, que variava entre duas formas de negativa: umas esboçavam um semblante compungido enquanto outras a ignoravam completamente, como se a menina não existisse. Mas ela existia, e de forma incômoda continuou passando entre as mesas recebendo ora o olhar compungido, ora a indiferença glacial. Algumas vezes era enxotada.
Voltei os olhos para a entrevista. No trecho que lia, o repórter perguntava a Vallejo se ele acreditava em Deus. Sua resposta foi uma das coisas que jamais esqueci, pela combinação entre o que eu lia e o que acabara de presenciar: “Claro que acredito”, o escritor respondeu. “É só olhar à sua volta para você ver a maldade de Deus em toda parte”.
Assim que terminei de ler a resposta, procurei a menina. Ela não estava mais lá, já tinha saído do bistrô. Avistei-a longe, inocentemente ziguezagueando pela calçada, como se brincasse consigo mesma, enfrentando com uma resignação comovente o sol escaldante do meio dia. Certamente estava faminta, sem entender o que fazia neste mundo no qual não pediu para estar.
À minha volta, as pessoas continuavam a conversar alegremente. Falavam de futebol, de política, de roupas, de carros, de computadores, de shows de rock, de cursos, de empregos. Talvez falassem até de Deus. Como se Deus não tivesse passado por ali.