sexta-feira, 25 de maio de 2012

A biografia que não escrevi - crônica


Navegando no orkut, deparei com uma pessoa que conheci no ano 2000, na noite do lançamento do Meu Caro H: dona Palma Donato, viúva do escritor Marcos Rey.
Lembro dela se aproximando da mesa de autógrafos, num vestido azul de bolinhas brancas, o olhar muito vivo, batendo palmas e perguntando se eu sabia quem ela era.
- Sinceramente... - tartamudeei, fazendo um esforço inútil para lembrar, pois de fato nunca a vira antes.
- Sou Palma Donato - ela disse, entre simpática e agitada. - Viúva do Marcos Rey.
Cumprimentei-a e só então relacionei as palmas ao seu nome, uma ligação algo pueril que ela devia usar para cativar as pessoas.
Aquela noite já me reservara boas surpresas, mas aquela foi especial. Marcos Rey já era um de meus autores favoritos. Não apenas por seu reconhecido talento, um mestre da narrativa, mas também pela injustiça com que a crítica o tratava, numa época em que as obras tinham de ter o discurso engajado ou inovações na linguagem. O autor de Memórias de um gigolô preocupava-se tão-somente em contar uma história. E o fazia magistralmente.
Assim que identifiquei dona Palma, mandei-lhe uma mensagem e adicionei-a à minha página. Não demorou a resposta:
“Samir: Que satisfação vê-lo nem que seja por essa telinha. Ver que está bem. Nunca esqueci de você. Meu grande abraço e meus agradecimentos, pelos votos. Gostaria de mandar-lhe a biografia de Marcos Rey, caso não tenha. Receberia? Um grande abraço da amiga Palma.”
Respondi-lhe que sim, claro que receberia. Seria uma honra lê-la. Então me lembrei de uma história envolvendo dona Palma e a biografia de seu marido, ocorrida logo depois do lançamento em que a conheci.
Alguns dias se passaram, ela me ligou. Havia acabado de ler Meu caro H e não economizou nos elogios. Lá pelas tantas, fez-me uma sondagem: eu aceitaria escrever a biografia do Marcos Rey?
Não acreditei que ela falasse sério. Eu havia tido apenas um contato com o escritor, quando o entrevistara em 1995 para um jornal literário. Lera suas obras, admirava-o como a um mestre, mas tinha noção de que havia gente bem mais apropriada para a empreitada. Gente que o conhecera de perto, que convivera com ele. Mas dona Palma falava sério.
- Se não for você, só se for o García Márquez ou o Vargas Llosa - disparou.
Não fiz mais do que rir, porque a comparação era naturalmente despropositada. Mas não deixei de me sentir orgulhoso com a consulta.
Meses depois, encontrei-a num outro lançamento. Ela estava na fila. Ao me ver, foi direto ao assunto:
- Olha, sobre aquele assunto, eu não esqueci: continua valendo o convite.
Agradeci novamente, incrédulo diante da lembrança e da insistência dela “naquele assunto”. Depois disso, nunca mais voltei a vê-la.
Em 2004, li nos segundos cadernos que a biografia do Marcos Rey fora lançada, escrita pelo jornalista Carlos Maranhão e publicada pela Companhia das Letras. Uma editora de primeira para a memória do grande escritor que ele foi. Li as resenhas, que foram boas, nunca esquecendo, com um brilho de orgulho no fundo da alma, que eu fora sondado para aquela escrita.
No orkut, ao dizer que receberia o livro de bom grado, ela pediu meu endereço. Eu o enviei, procurando conter a ansiedade: correspondências costumam demorar.
Ao chegar ao apartamento à noite, porém, o porteiro entregou-me um pacote. Olhei o remetente: Palma Donato. Generosa, ela mandara entregar o livro no mesmo dia, por motoboy. Talvez intuísse que eu fosse ficar ansioso. Adivinhou.
Larguei tudo o que estava lendo para mergulhar na biografia. Maldição e glória é daqueles livros que nos pegam pela emoção. E Marcos Rey, que já me fora tão próximo, ficou mais perto ainda.

* Crônica escrita em outubro de 2005 e revista para esta postagem.