sábado, 6 de agosto de 2011

Saio da Ática para entrar na história - crônica em dois atos

Primeiro ato.
Duas semanas antes de você ser demitido, lhe oferecem um “desafio”, como gostam de dizer. Dizem que é a sua grande oportunidade. Que você é “um cara competente”. Que “possui repertório”. O “homem multimídia do editorial”. Que é “um cara legal”. Enfim, a pessoa talhada para aquele desafio. Antes de deixar a sala, elas o abraçam. “Boa sorte”, diz uma. “Vai dar tudo certo”, diz a outra. Agora você precisa conversar com sua futura gestora, inteirar-se da mudança.
Você, um funcionário dedicado, sai da sala e vai pegar um café para tragar direito o que acabou de ouvir. Tenta se contaminar do entusiasmo das suas superiores, mas no fundo mantém uma providencial reserva. Sabe como as coisas funcionam por ali. Está há catorze anos sem uma promoção. Culpa sua, decerto. Em vez de fazer conchavos, de se esmerar na arte da bajulação, de se fazer onipresente na sala das chefias, você se preocupava tão somente em fazer bem o seu trabalho.
Você toma o café, passa no toillet e vai conversar com sua futura chefe. É uma mulher afável, e você se sente à vontade para fazer a pergunta que não quer calar em sua mente. A mudança envolve promoção? Envolve aumento de salário? Não, não envolve, ela diz. Envolve o quê, então? Ela então explica o que a mudança envolve.
A mudança consiste em transferir-se do quinto andar, onde você tem o seu ambiente, para o terceiro, um andar inóspito para você, repleto de gente de nariz empinado, que tem o péssimo hábito de não cumprimentar e adora dizer que foi ao show do U2, mas nunca leu Machado de Assis. Que adora usar palavras como viral, vibe, expertise, mas escreve coisas como “ancioso” ou “isso não tem nada haver”. Uma fauna humana com interesses bem diferentes dos seus e uma visão de mundo bem diferente da sua.
Você projeta o seu dia a dia entre aquelas criaturas. Sua autoestima não teria a menor chance. Em semanas você se sentiria um ser do pré-cambriano, para dizer o mínimo, remoendo sentimentos nada auspiciosos em sua alma.
A mudança consiste também em ser mandado por pessoas que têm menos experiência editorial do que você. Você até imaginou que, depois de tantos anos editando gente do calibre de Marilena Chaui e Gilberto Dimenstein, autores top da editora, você ao menos fosse coordenar alguma coisa. Mas não. Você não coordenará coisa alguma. Sentará numa mesa de costas para a sua chefe e terá pela frente uma produção irreal de 120 livros num prazo exíguo.
Você agrega mais esse dado ao seu rol de informações e por fim vai se aconselhar com funcionários que conhecem bem o setor para onde querem mandar você. Todos dizem a mesma coisa: “Não vá. Ali o cenário é instável e insano. As pessoas vivem querendo se jogar do viaduto”. Você se assusta. O dia termina e você vai para casa tentando se convencer de que, não obstante o que lhe dizem, vai tirar de letra. Afinal, você é um cara competente. Um cara legal. Possui repertório. O homem multimídia do editorial.
Enfim, amanhece. Nada como um dia após o outro com uma noite no meio. Tudo bem que não foi uma noite tranquila. Você acordou várias vezes de madrugada. Sentiu o coração acelerado ao lembrar que suas superiores aguardam sua confirmação. Mas agora você está na padaria de costume e toma o seu café com a alma apaziguada. Traz uma decisão dentro de si. Uma decisão que redime seu espírito e devolve a dignidade que você supunha em cacos. Quita suas pendências de orgulho próprio, suas inquietações profissionais perante você mesmo.
Você chega cedo ao trabalho. Vai até a sala da sua chefe e, diplomaticamente, diz que não aceita o que lhe foi proposto. Está bem onde está e não se sentiria bem no outro departamento. Duas semanas depois, você é demitido.
Segundo ato.
Esta crônica não é uma lavagem de roupa suja nem uma forma de remoer rancores. Estou bem e me sinto grato pelos dezessete anos passados numa das editoras de ponta do país. Ali concluí uma graduação e uma pós-graduação, pude dar à minha filha bons colégios e uma vida digna à família. Ali escrevi cinco livros e editei vários. E ali aprendi muito e fiz muitos amigos. A demissão de um emprego faz parte da vida, como a doença e a morte. Como também fazem parte da vida a alegria, a compaixão, a gratidão, o encontro, a epifania, a comunhão, a arte, a música, a literatura, o cinema, a alteridade, a amizade, o amor.
Quem me conhece sabe que, nos momentos limites, sempre fiz terapia com as palavras. Em 1998, ao me saber hiv positivo, escrevi um relato autobiográfico sobre o que é viver nessa condição. Um livro que foi bem adotado nas escolas e me permitiu conhecer um pouco do Brasil. Entre 2005 e 2009, em outro relato visceral, expus os tabus e preconceitos que cercavam uma relação amorosa em razão do hiv e da diferença de idades. Coragem nunca me faltou. Nem lucidez. Não poderia agora deixar de fazer mais uma terapia, dessa vez na forma de crônica, para assimilar melhor este momento de transição.
Meu caminho está nas palavras. Há alguns meses, já tinha resolvido me dedicar aos livros juvenis. Nada de livros polêmicos ou de escrever novamente sobre Aids, mas escrever para o público juvenil, com o qual tanto me identifico. Preciso de oxigênio. Sempre me vi como um menino, no melhor sentido que Fernando Sabino dava a essa palavra. “O menino é o pai do homem”.
Um novo emprego decerto virá, e eu me dedicarei a ele com o mesmo afinco com que me dediquei ao anterior. Mas o hábito da escrita regular veio para ficar. Escrever para jovens em idade de formação sempre me fez bem. Acho que, bem ou mal, é o que sei fazer de melhor. Aquilo que me dá mais prazer. Parodiando Getúlio Vargas, em sua carta testamento, saio da Ática para entrar na história. História em minúscula, no meu caso. Ou em caixa baixa, como se diz no editorial. Romances juvenis recheados de peripécias, aventuras, mistérios e saborosas descobertas.
Está tudo certo.
Samir, 4 de agosto de 2011