segunda-feira, 14 de março de 2011

Da natureza do filho da puta (conto - abril de 2001)

Prometi que ligaria para o noivo dela e contaria tudo. Deixei o recado de manhã cedinho na caixa postal do seu celular. Fui curto e grosso: “seu noivinho vai saber quem você é”. Depois fui tomar banho. Tinha um dia duro pela frente.
Não me considero um cara do mal. No cinema, costumo chorar, e sempre dou caixinhas generosas a garçons, frentistas e flanelinhas. Só fiz mal a quem foi filho da puta comigo. Ou com quem é filho da puta por natureza. Sujeitos que já nascem com má índole. Sacanas. Pústulas. Biltres. Pelintras. Essa corja eu não perdoo.
Mas ela não. As coisas aconteceram de um modo cruel para nós, e eu não deixei de me sentir traído pela forma como tudo terminou. Mas daí a considerá-la filha da puta ia uma enorme distância.
Quando desliguei o chuveiro, já sabia que não cumpriria minha nociva promessa. Me vesti, penteei o cabelo, limpei a lente dos óculos, aspergi desodorante. Gosto da sensação de catarse que o desodorante proporciona, como se me purificasse das mais inconfessáveis transgressões. Tomei café com o espírito apaziguado, embora me doessem algumas lembranças.
No metrô, fui ruminando pensamentos. Tudo tinha ocorrido por culpa minha, eu tinha a decência de fazer esse mea culpa. Se não houvesse cedido aos seus encantos quando ela me assediou na sala de aula onde a conheci, nada daquilo teria acontecido.
Uma amiga pressagiou o perigo que me rondava. “Toma cuidado”, ela me advertiu, “que essas garotas costumam deixar o cara apaixonado e depois caem fora na maior”.
Sem dúvida que era um conselho sensato. Mas eu já me encontrava por demais envolvido com a ninfeta, e as palavras da minha amiga serviram apenas para que eu me sentisse mais desafiado a contrariar seus sábios augúrios.
Em vez disso, uma reflexão involuntária começou a fazer eco na minha mente. A mente humana é uma coisa extraordinária. Quando concentramos o pensamento em algo, não temos noção do grau de detalhe a que podemos descer.
Eu me via agora dominado por uma obsessão que me acenava como um insólito alento. Comecei a relacionar mentalmente os filhos da puta com quem já tivera contato na vida. Crápulas, velhacos, pulhas, calhordas. É óbvio que, para isso, eu teria de estabelecer um critério. Não queria cometer o pecado da generalização.
Saí da estação com o meu plano já traçado na mente e fui agregando detalhes. Assim que chegasse à empresa, faria um esboço, para não perder a essência da ideia. Porque era uma ideia tão sutil e de contornos tão débeis, que qualquer descuido causaria uma perda irreversível na fidelidade de sua concepção.
Esse interesse repentino pelos filhos da puta fez com que me esquecesse por completo do que fizera pela manhã. Sou muito impetuoso quando assaltado por uma ideia que julgo espirituosa. E muito obtuso também. Penso que os grandes gênios da ciência, ao conceberem seus inventos, foram movidos por ímpetos semelhantes ao que me tomava naquela manhã. Imagino Tomas Edison ao sentir em si o germe da ideia da lâmpada. Einstein, ao receber o insight da relatividade. Arquimedes, no instante em que gritou "eureka!". De modo que foi com sobressalto que, ao atender o telefone, ouvi a voz cheia de ira da minha ex-namorada perguntando se eu teria coragem de fazer aquilo.
Demorei a entender a que ela se referia. Mas logo me lembrei do recado que deixara em sua caixa postal e no ato me recompus. Sou muito pragmático quando quero.
Resolvi valorizar minha derrota e disse-lhe que sim, que iria ligar para o noivo dela e dizer que nós tivéramos um tórrido caso de amor.
Ao ouvir isso, a ira dela multiplicou-se. Me chamou de covarde, disse que eu não era homem e que agora sim eu revelava a minha verdadeira face.
Eu não estava interessado na opinião dela sobre mim, agora que tudo tinha acabado. Além disso, estava inteiramente voltado para o rascunho que já começara a fazer dos mequetrefes que conhecera em vida. Pedi a ela que me ligasse na hora do almoço, ao meio-dia.
Não sei se foi o sobressalto por ouvir sua voz, ou a expectativa para a conversa que teríamos mais tarde. A esperança é traiçoeira. Dá-nos ilusões muitas vezes falsas sobre fatos que já estão definidos no plano das intenções. Eu já estava com o meu destino selado e não sabia. E a obsessão com que me entregara àquele esdrúxulo exercício mental de relacionar os patifes e os infames nada mais era do que um sintoma de que no fundo tinha consciência de que havia me transformado na ponta prejudicada daquele triângulo amoroso.
Sei que, depois que desliguei o telefone, não consegui mais dar com o sentido da ideia que me assaltara no metrô. Que se fodessem os filhos da puta!, era o que eu pensava agora. Com que intuito iria relacioná-los numa folha de papel?
Trabalhei em harmonia aquela manhã. Minha produção foi boa.
Ao meio-dia ela ligou. Ainda estava furiosa, mas primeiro queria me ouvir. Então eu lhe disse que ficasse tranquila: eu não iria ligar para o noivo dela. Ela bem que merecia, mas eu não iria fazer isso. Não prejudicaria a vida dela, nem a dele (e nem a minha, mas isso eu não falei para ela). Pois eu podia ser tudo, arrematei, mas se tinha uma coisa que eu não era, era um filho da puta.
Ela ouviu tudo calada, e pude perceber seu alívio com a minha atitude. E, antes de desligar, em tom conciliador, disse que sabia que eu não faria nada daquilo. Que sabia que eu não era um filho da puta.
Sem ter mais o que conversar, nos despedimos. Desejei a ela paz em sua vida. Ela retribuiu, dizendo que desejava o mesmo para mim. Foi a última vez que conversamos. Depois fui almoçar, que eu vinha me alimentando muito mal ultimamente.

terça-feira, 8 de março de 2011

Funduras - conto (c.1987)

Eu só pude entendê-la por completo quando a vi no caixão, o rosto duro, as narinas atochadas de algodão, os olhos bistrados, como a censurar-me por não tê-la amado como devia em vida, um fio de sangue, pálido feito mostarda aguada, a escorrer pelo canto da boca, a pele calcinada, as unhas roxas. Em torno, fantasmas. Era de manhã.
Depois que o corpo desceu ao jazigo e a sepultura foi chumbada, espantei-me com a alegria que as sobras da manhã me prometiam, apesar de. Saí caminhando sozinho, deixei os fantasmas para trás e percorri toda a calçada de muro branco do cemitério. Depois de tudo, o que mais queria era andar.
O vento que soprava era um acinte. Roçava-me o rosto, arrastava pensamentos, lembranças, como se fossem correntes. Os pardais aterrissavam em bando na fronde das árvores esquálidas. Um sol já alto me aquecia. Ciganear pelas ruas do bairro desconhecido.
Por muito tempo não quis encontrar gente, deparar rostos. Procurei as ruas mais desertas, as vilas mais recônditas, viadutos sujos e anônimos, até chegar a uma praça, o mato crescendo entre as frestas no cimentado, formigas alheias a tudo. Perdi a noção das horas. Espraiar o olhar e não pensar em nada.
Não sei quanto tempo ali sentado, pensando nela, agora envolvida no mistério. Estranho como tudo mudou, e o que antes era, agora não é, e o que antes parecia, agora não parece. Podíamos ter sido, não fomos. Podíamos ter feito, não fizemos. Podíamos ter vivido, não vivemos. Nunca mais a esperança de viver o que nunca vivemos.
Fazia calor e as sobras da manhã iam se esmaecendo. A vida acordava aos poucos. Era preciso acordar o resto de vida em mim. Pensar cores brancas, a cal das paredes, a luz do sol entrando pela fresta da memória, risadas soltas, gargalhadas, uma frase que ficou para sempre, outra que se perdeu, preciosa, passos na rua numa noite fria, uma reza, o desvelo à noite no escuro do quarto, uma esperança perdida, o corpo branco estirado no corredor, iluminado de juventude e do sol que batia, a vida, a vida.