terça-feira, 26 de junho de 2012

Eu sou Clara Crocodilo - conto kafkiano (2001)


            Meu corpo sofreu transmutações, mas minha mente permanece intacta. Intacta e lúcida. Até quando intacta e até quando lúcida, ainda não sei. Aproveito que tem visita na sala para colocar tudo no papel, antes que seja tarde. Antes que meu lado humano capitule e meu lado sáurio prevaleça.
            Tudo teve início numa tarde ensolarada de sábado, em que saí com minha filha para irmos à feira de antiguidades da Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. Quem mora em São Paulo conhece essa feira. Nela se encontram desde aros antigos de óculos, como os que eu usava na tarde em que tudo aconteceu, até fotografias da São Paulo de outrora; de talheres de prata do começo do século 20, a livros e revistas raros e discos de vinil. As bolachas de vinil, depois que inventaram o CD, viraram o meu obcecado objeto de desejo. Passei a visitar sebos e antiquários e a comprar tudo o que não pudera comprar de vinil na adolescência, pois na época os discos eram caros e eu dependia do parco dinheiro que meus pais me davam, que mal dava para o cinema nos finais de semana.
            Como sempre fazia, naquele sábado parei em todas as barracas onde houvesse discos, na horizontal ou na vertical, para garimpar o que me interessasse. Obviamente acossado por minha filha, que não gostava que eu me demorasse, pois queria assuntar as barracas de esoterismo, o motivo por sua vez de seu obsessivo interesse, apesar de ter apenas doze anos de idade. Eu via com bons olhos essa curiosidade dela pelas ciências ocultas. Ela já havia lido os três volumes de Harry Potter e vivia trocando mensagens na Internet com quem se interessava por assuntos de bruxaria. Não achava que fosse um mau começo para uma adolescente que recebia diariamente toda a carga de lixo cultural que a mídia mais e mais despeja na mente dos jovens.
            Eu satisfazia o desejo de minha filha, ia com ela até a barraca de ocultismo, esperava com enfado que ela olhasse artigo por artigo daquele universo que nada me dizia ao intelecto, mas obstinadamente logo voltava para as tendas de discos de vinil e passava a revolver com os dedos ágeis que possuía as preciosidades que de um momento para outro pudessem saltar à minha frente. Como vêem, eu era um sujeito normal, que levava uma vida normal, salvo algumas extravagâncias. Um humano. Um homem humano. Mas agora todos pensam que estou morto. Sim, todos pensam isso, porque depois dos acontecimentos insólitos daquele sábado, nunca mais pude pôr os pés para fora de casa. Somente minha filha e minha mulher sabem o que se passou comigo naquele dia, embora não se conformem com o rumo dos fatos e não entendam de fato o que realmente aconteceu. Nem eu próprio, a maior vítima na história toda, consigo na verdade entender. Mas elas me amam e sei que pelo menos tenho a garantia de que jamais irão me abandonar. É o que me mantém vivo.

            Naquele sábado promissor, na feirinha de antiguidades, eu fuçava uma enorme pilha de discos antigos quando bati os olhos num que há muito tempo procurava: Clara Crocodilo, do Arrigo Barnabé.
            Ao ver o disco, minha respiração alterou-se. Junto dele havia outros dois discos do Arrigo, Tubarões voadores e Uga-Uga, mas estes não me interessavam naquele momento. Apenas o Clara, com seu atonalismo radical e a capa antológica feita pelo Luiz Gê, me dizia respeito. Era um disco que eu comprara em 1981, ano em que muita coisa mudou na minha vida, e que eu ouvira alucinadamente nas minhas tardes e noites de solidão. Nesse ano atingi a maioridade, minha mãe descobriu que tinha câncer e li Recordações da casa dos mortos, do Dostoiévski, um livro que mexeu muito comigo na época e ainda mexe. Foi um ano crucial na minha formação, e fico pensando se muitos dos acontecimentos que nele se deram não houvessem ocorrido, no que eu teria me transformado.
            Mais do que depressa puxei o álbum para fora da pilha e tirei o disco para verificar seu estado. Novinho em folha. Parecia até que nunca tinha sido executado. Suas partes estalavam de intactas. O plástico de proteção se encontrava incólume. O dono da barraca, um sujeito simpático, percebendo minha perturbação, tratou logo de se aproximar, enxergando em mim o típico farejador de preciosidades que pagaria os tubos por uma obra rara como aquela. Disfarcei o grau do meu interesse e perguntei-lhe o preço do disco, fazendo ar de quem não está muito tentado a levar, a não ser que o preço fosse razoável. Quinze reais, ele disse. Salgado. Pedi um desconto. Ele baixou para doze, até que foi generoso. Mas continuava salgado. Ofereci dez. Ele ensaiou um amuo. Fechamos em onze. Dei-lhe vinte reais. Ele estava sem troco. Levei o disco por dez.
            Percebem? Até nisso eu era um sujeito normal, pechinchava sempre que entrevia uma brecha para isso.

            Minha mulher me interrompe para perguntar se vou querer rã ou passarinho no almoço. Digo que rã; ontem almocei passarinho. A semana toda almocei passarinho. Ela ainda não se habituou a essa faceta réptil da minha nova condição, mas prefere me ver degustando um delicado passarinho a um repelente camundongo, como seria de minha vontade. Para não vê-la ainda mais aflita, satisfaço-me com afáveis passarinhos, ou, como hoje, com as rãs.
            Ela está com visitas na sala e sabe que, para que não descubram que vivo escondido neste quarto, às vezes deixo de pedir as coisas de que preciso, mesmo coisas básicas e vitais como o almoço do dia. Mas não estou propriamente com fome. Nesse instante estou dominado por esta fúria incontrolável de contar o que se passou comigo desde aquele fatídico sábado. Nunca contei a ninguém essa história, porque ninguém iria acreditar nela e eu ainda seria tomado por louco. Escrevendo, pelo menos se amanhã eu morrer de verdade, minha mulher e minha filha poderão mostrar o escrito para algum editor e a memória do marido e do pai que eu fui um dia poderão ser resgatadas. Pois a memória do que eu fui antes de me transubstanciar neste ser extravagante é a única coisa que me importa nesse momento. Por isso escrevo. E se o livro acaso virar best seller, ao menos elas terão com que se sustentar.

            Pego o prato com a rã que minha mulher traz furtivamente até o quarto e volto às lembranças daquele dia. Saí da feira com o coração sobressaltado. Minha filha também estava eufórica, pois eu lhe havia comprado um jogo de tarô, um sino dos ventos e um chapéu de estilo francês que ela cortejava. Entramos no carro como duas crianças que haviam acabado de ganhar presentes com os quais há muito tempo sonhavam: ela com o chapéu francês e o jogo de tarô; eu, com o Clara Crocodilo e sua música dodecafônica que havia anos não ouvia. Não via a hora de chegar em casa e pô-lo para tocar.
            Fiz o percurso em tempo recorde. De vez em quando olhava para o banco de trás, onde colocara o disco, para me certificar de que não estava sonhando. Em meia hora entrava com o carro pela garagem de casa. Minha ansiedade era tanta que por pouco não atropelei um cachorro, que insistia em defecar justamente no espaço destinado à passagem do carro. Buzinei três vezes, mas ele se encontrava no meio de sua escatológica empreitada. Ah, eu era humano, eu era demasiadamente humano, e entre os meus defeitos estava o da impaciência quando algum obstáculo se opunha em meu caminho. O pobre cachorro teve de se arrastar com sua merda pendurada pelo cu, pois eu investi com fúria contra ele, na minha pertinaz e quase neurótica obsessão em ouvir o disco.
            Entrei em casa e fui direto para a vitrola – não reparem, ainda não consigo deixar de usar vocábulo tão obsoleto. Sou filho de uma época. Todo mundo é. Mal podia esperar pelos primeiros acordes. Minha mulher estava no quarto, lendo um livro sobre mitologia grega. Ela havia descoberto recentemente os gregos e agora vivia para cima e para baixo com o livro de mitologia na mão.
            Como veem, não somente eu era um sujeito normal, como minha família, não obstante nossas obsessões, era uma família normal. Mas agora, depois de todo esse pesadelo, não sei o que vai ser de nós. Ainda não decidimos, minha mulher e eu, o que faremos em relação a mim. Talvez não façamos nada. Minha mulher continuará sua vida, como tem feito. Ela é funcionária pública, o que lhe garante alguns privilégios que nos são propícios neste momento. Não carece dizer que deixamos de ter relações sexuais em face da minha transmutação. Agora éramos de espécies diferentes, não podíamos transar. Ou não nos sentíamos à vontade para isso.
            Minha filha seguirá estudando, se formará – ela quer ser bióloga, apesar de sua faceta mística. Mas isso é uma questão que ela própria terá de resolver. Quanto a mim, a única coisa que posso fazer é escrever.
            Olha o que eu achei gritei para minha mulher, assim que entrei em casa, abrindo o tampo da vitrola e encaixando o disco.
            – Estou lendo, depois eu vejo – ela me respondeu do quarto, preguiçosamente, não querendo levantar-se.
            Resolvi não amolá-la.
            Coloquei a primeira música do lado A: “Acapulco Drive-In”. Me arrepiei todo. As vozes agudas do coro feminino penetravam a sala como agulhas, finíssimas, afinadíssimas.

            Boca da noite, boquinha de gata
            Chupando, mordendo, bala de conhaque

            Logo a voz rascante do Arrigo se fez ouvir.
            Em “Orgasmo total” ela irrompeu no ambiente da sala com violência, como os augúrios de aves noturnas pressagiando acontecimentos funestos. Quando entrou a terceira faixa, “Diversões eletrônicas”, eu já estava tomado do mesmo estado de espírito que experimentara há vinte anos:

            Só você não viu
            Mas ela entrou, entrou com tudo
            Naquele antro sujo
            Você nunca imaginou, mas eu vi,
            No luminoso estava escrito
            DIVERSÕES ELETRÔNICAS

            Acho que foi ali, sob o efeito daquela voz áspera, que teve início minha transformação, mas até então eu nada percebera. Hoje imagino que os primeiros sinais de minha estranha mutação devem ter se iniciado de modo lento, talvez pelas regiões mais íntimas da minha derme, não visíveis, e à medida que as músicas se sucederam, foram subindo, subindo, formando pápulas, ganhando contornos de rosáceas, até eu perceber a primeira lâmina esverdeada no dorso de minha mão. Achei estranho, Tetê Espíndola cantava “Sabor de veneno”, e foi ao colocar o lado B do disco que percebi aquela primeira lâmina.

            Você já viu aquela menina
            Que tem um balanço diferente
            Se você viu e reparou
            Ela tem um jeito de sorrir, de falar, de olhar
            Que me deixa louco
            Ah, eu fico louco

            Porém, não dei a atenção devida, envolvido que estava pela atmosfera da música, uma de minhas preferidas no disco todo. Se tivesse me dado conta da gravidade do que estava por vir, talvez tivesse interrompido a audição e evitado tudo o que sobreveio. Talvez, não tenho certeza. Mas como eu poderia imaginar? Principalmente não chegaria à ultima faixa do disco, a música que dava nome a ele, “Clara Crocodilo”, e que certamente foi o que consolidou a onda de inexplicáveis transmutações físicas que começaram a se operar em mim.
            A narração na voz de Regina Porto, depois que Durango, o protagonista da história, toma uma injeção, foi profética, e pode ser que, na minha embriaguez, eu a tenha levado a sério demais. Sou muito intenso em tudo que faço:

            E ele flutuou. Sim... flutuou para longe dali, envolvido numa sensação deliciosa. Mas, o que ele não sabia, é que estava sendo transformado num terrível monstro mutante, meio homem, meio réptil, vítima de um poderoso laboratório multinacional, que não hesitou em arruinar sua vida para conseguir seus maléficos intentos. Os cientistas haviam calculado tudo. Mas, o que eles não sabiam, é que aquele ser disforme conservava parte de sua consciência. E logo todo o seu poder se transformou em fúria e violência sobre-humana. Os cientistas foram os primeiros a conhecer sua ira. Depois, toda a cidade estremeceria ao ouvir falar em Clara Crocodilo.

            A essa altura, eu já não reconhecia mais a mim mesmo. Em seguida, a voz do Arrigo deu o tiro de misericórdia:

            São Paulo, 31 de dezembro de 1999. Falta pouco, pouco, muito pouco mesmo para o ano 2000 e você, ouvinte incauto, que no aconchego do seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou este disco na vitrola, você que, agora, aguarda ansiosamente o espoucar da champanha e o retinir das taças, você, inimigo mortal da angústia e do desespero, esteja preparado... o pesadelo começou. Sim, eu sei, você vai dizer que é sua imaginação, que você andou lendo muito gibi ultimamente, mas então por que suas mãos tremeram, tremeram, tremeram tanto quando você acendeu aquele cigarro... e por que você ficou tão pálido de repente? Será tudo isso fruto da sua imaginação? Não, meu amigo, vá ao banheiro agora, antes que seja tarde demais, porque neste mero disco que você comprou num sebo esteve aprisionado por mais de vinte anos o perigoso marginal, o delinquente, o fascínora, o inimigo público número 1, Clara Crocodilo...

            Entrei numa espécie de transe hipnótico, como se alguém ou algo tivesse invadido minha mente para dominá-la. Ou, hipótese muito provável, como se algum ser estivesse adormecido em meu subconsciente e à audição de “Clara Crocodilo” houvesse despertado de seu sono profundo.
            Quando acordei, ainda aturdido pela brutal alomorfia, minha mulher e minha filha estavam ao meu lado, aterrorizadas, sem saber o que fazer diante de mim, metamorfoseado num... como descrever no que me transformei desde aquele instante?
            Eu preservara meu tamanho natural, a mente lúcida e a linguagem articulada, mas agora nada mais era do que um sáurio, um repulsivo sáurio, com o corpo revestido de lâminas de coloração verde-oliva, crista serrada sobre a cabeça, uma cauda comprida que me atrapalhava os movimentos e uma língua fina e protrátil, ou seja, eu podia alongá-la extraordinariamente para a frente. Em pouco tempo descobri que minha língua era tão fina que eu poderia projetá-la para fora da boca sem sem que precisasse abri-la.
            A primeira sensação que tive ao despertar foi a de viver um pesadelo, real como todos os pesadelos que tivera em minha vida. Mas, à medida que os minutos se passavam e que olhava minha mulher e minha filha apavoradas ao mesmo tempo que fechavam janelas e portas para que ninguém me visse ou entrasse, ia entendendo que tudo assumia contornos de uma terrível realidade. A insuspeitada coragem que elas demonstraram diante do meu aspecto só podia ser fruto do incomensurável amor que sentiam por mim, mesmo convertido naquela repugnante criatura. Estávamos em torno de um fato sobrenatural para o qual não tínhamos explicação. O que havia de certo para nós, e principalmente para elas, era que a criatura que ali estava continuava sendo eu, o pai, o marido, e fosse o que fosse o que tivesse ocorrido, minha vida deveria ser poupada até a última instância, uma vez que não demoraram a perceber que apesar do meu aspecto horripilante eu não lhes oferecia perigo.

            Minha filha entra no quarto. Pergunta se está tudo bem. Ela teme que me sinta solitário quando há visitas. Respondo que sim, suspendendo a escrita e olhando-a com ternura, com o que restou de ternura em meu olhar. Pois, apesar de tudo, apesar de não ter mais a forma humana, não perdi os sentimentos humanos. Ela se aproxima, beija meu rosto coberto pelas escamas e passa a mão pela minha crista serrada. Às vezes acho que já se acostumou a ter um pai que não pode sair do quarto e que todos pensam que já morreu. Uma morte misteriosa para a qual ele não tem uma explicação plausível. Porém, no dia dos pais, sei que padece, pois todos os alunos preparam um presente para seus pais em sala de aula e os entregam a eles no dia apropriado, e ela não pode fazer isso. Não se prepara um presente para alguém que está morto.

            Naquele sábado em que tudo aconteceu, as duas não desgrudaram de mim um só instante, e cogitaram se deviam chamar um médico, a polícia, os bombeiros. Decidiram não fazer nada e esperar. Não sabiam o quê, mas decidiram esperar. Trancaram as portas, apagaram as luzes, deixaram apenas a lâmpada do quarto acesa. Quando viram que eu recobrava a lucidez, perguntaram como me sentia. Disse que bem, que apesar daquele estranho acontecimento, estava bem, apenas tinha um pouco de fome e de sede. Até gracejei, dizendo que me sentia na pele de Gregor Sansa, o personagem de Kafka que ao acordar numa manhã se vira transmudado num monstruoso inseto. Nenhuma das duas viu a menor graça no gracejo.
            Minha mulher trouxe-me um pouco de café e pão e me serviu na boca, pois eu ainda estranhava o novo formato que adquiriram minhas mãos, agora com grossas unhas saltando de cada dedo. No dia seguinte, com alguma dificuldade, ela quis apará-las, mas eu impedi. Depois esse ato se revelou providencial, pois é com as unhas que eu realizo a única atividade que tem me ocupado até os dias em que revelo estes fatos, a atividade da escrita.
            – E agora? – ela me perguntou, no final do domingo. – Como você vai trabalhar, se relacionar com o mundo lá fora?
             – Ainda não pensei nisso – falei-lhe, sem muita reflexão.
            Era um problema grave que afetava não só a mim, mas a elas também. Não sabíamos que repercussão o caso teria entre vizinhos, amigos, parentes. Era quase certo que elas sofressem hostilidades por minha causa, e que eu fosse demitido do emprego e elas passassem privações em razão disso.
            – Nesse caso, não é melhor avisar alguém, a polícia, a empresa, a imprensa...
            – Não! – eu gritei.
            Não queria que ninguém soubesse do ocorrido. Muito menos as instituições que ela citara. Eu não confiava em ninguém. Em ninguém. Nunca confiara em ninguém. Apenas nelas. E, depois daquele episódio, mais do que nunca eu me apegava àqueles dois seres aos quais me achava unido pelos eternos laços familiares.
            Surpreendi-me ao perceber que não sentia o mesmo prazer de antes ao absorver o pão e o café. Era de outros alimentos que eu tinha fome. Alimentos menos afeitos ao ser humano que eu fora um dia: rãs, camundongos, coelhos, passarinhos e outros pequenos animais que prefiro não citar. Foi diante de tal constatação que descobri que minha natureza havia se adulterado de modo irreversível. Embora mantivesse o controle de meus pensamentos e não os derivasse para o mal, era fato que muitos de meus instintos pertenciam a outro ser, muito provavelmente ao ser que invadira a minha mente à audição de “Clara Crocodilo”, naquele infausto sábado.
            Que estranho nexo psíquico me uniria àquele personagem que me seduzira há vinte anos e com o qual agora eu retomara contato ao descobri-lo perdido num sebo de São Paulo? Teria sido, a audição daquela música, a pedra-de-toque que detonou todo o pesadelo que passei a viver desde então? São perguntas que me faço com cada vez menos frequência, pois a essa altura já perdi a esperança de recuperar minha natureza humana. Mas não posso, todavia, esquecer-me dela, pois sinto que um embate se trava dentro de mim. De um lado, o ser humano que fui, apaixonado, intenso, sensível, cultor das artes e das ciências. De outro, o sáurio que habita em mim, insidioso, virulento, carnívoro e animal, que não hesitará em me dominar caso eu lhe dê uma mínima chance.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A biografia que não escrevi - crônica


Navegando no orkut, deparei com uma pessoa que conheci no ano 2000, na noite do lançamento do Meu Caro H: dona Palma Donato, viúva do escritor Marcos Rey.
Lembro dela se aproximando da mesa de autógrafos, num vestido azul de bolinhas brancas, o olhar muito vivo, batendo palmas e perguntando se eu sabia quem ela era.
- Sinceramente... - tartamudeei, fazendo um esforço inútil para lembrar, pois de fato nunca a vira antes.
- Sou Palma Donato - ela disse, entre simpática e agitada. - Viúva do Marcos Rey.
Cumprimentei-a e só então relacionei as palmas ao seu nome, uma ligação algo pueril que ela devia usar para cativar as pessoas.
Aquela noite já me reservara boas surpresas, mas aquela foi especial. Marcos Rey já era um de meus autores favoritos. Não apenas por seu reconhecido talento, um mestre da narrativa, mas também pela injustiça com que a crítica o tratava, numa época em que as obras tinham de ter o discurso engajado ou inovações na linguagem. O autor de Memórias de um gigolô preocupava-se tão-somente em contar uma história. E o fazia magistralmente.
Assim que identifiquei dona Palma, mandei-lhe uma mensagem e adicionei-a à minha página. Não demorou a resposta:
“Samir: Que satisfação vê-lo nem que seja por essa telinha. Ver que está bem. Nunca esqueci de você. Meu grande abraço e meus agradecimentos, pelos votos. Gostaria de mandar-lhe a biografia de Marcos Rey, caso não tenha. Receberia? Um grande abraço da amiga Palma.”
Respondi-lhe que sim, claro que receberia. Seria uma honra lê-la. Então me lembrei de uma história envolvendo dona Palma e a biografia de seu marido, ocorrida logo depois do lançamento em que a conheci.
Alguns dias se passaram, ela me ligou. Havia acabado de ler Meu caro H e não economizou nos elogios. Lá pelas tantas, fez-me uma sondagem: eu aceitaria escrever a biografia do Marcos Rey?
Não acreditei que ela falasse sério. Eu havia tido apenas um contato com o escritor, quando o entrevistara em 1995 para um jornal literário. Lera suas obras, admirava-o como a um mestre, mas tinha noção de que havia gente bem mais apropriada para a empreitada. Gente que o conhecera de perto, que convivera com ele. Mas dona Palma falava sério.
- Se não for você, só se for o García Márquez ou o Vargas Llosa - disparou.
Não fiz mais do que rir, porque a comparação era naturalmente despropositada. Mas não deixei de me sentir orgulhoso com a consulta.
Meses depois, encontrei-a num outro lançamento. Ela estava na fila. Ao me ver, foi direto ao assunto:
- Olha, sobre aquele assunto, eu não esqueci: continua valendo o convite.
Agradeci novamente, incrédulo diante da lembrança e da insistência dela “naquele assunto”. Depois disso, nunca mais voltei a vê-la.
Em 2004, li nos segundos cadernos que a biografia do Marcos Rey fora lançada, escrita pelo jornalista Carlos Maranhão e publicada pela Companhia das Letras. Uma editora de primeira para a memória do grande escritor que ele foi. Li as resenhas, que foram boas, nunca esquecendo, com um brilho de orgulho no fundo da alma, que eu fora sondado para aquela escrita.
No orkut, ao dizer que receberia o livro de bom grado, ela pediu meu endereço. Eu o enviei, procurando conter a ansiedade: correspondências costumam demorar.
Ao chegar ao apartamento à noite, porém, o porteiro entregou-me um pacote. Olhei o remetente: Palma Donato. Generosa, ela mandara entregar o livro no mesmo dia, por motoboy. Talvez intuísse que eu fosse ficar ansioso. Adivinhou.
Larguei tudo o que estava lendo para mergulhar na biografia. Maldição e glória é daqueles livros que nos pegam pela emoção. E Marcos Rey, que já me fora tão próximo, ficou mais perto ainda.

* Crônica escrita em outubro de 2005 e revista para esta postagem.

sábado, 14 de abril de 2012

Paixão de menino - crônica


Corria o segundo semestre de 1980, eu tinha dezesseis anos e era apaixonado pela professora de história. Como não me apaixonaria? Eu era um garoto tímido e estudioso, e a Rosa – Rosinha, como a chamávamos – era uma coisinha pequena e magrinha, tinha um rosto de atriz de cinema francês encimado por cabelos curtos, à rapazinho, possuía uma inteligência acima da média e um charme que me fazia disfarçar que prestava atenção na aula enquanto olhava para ela.
Rosa falava coisas que só causavam alvoroço na minha paixão oculta. Citava Violeta Parra e Mercedes Sosa, comentava as peças do Plínio Marcos e do Augusto Boal, falava de Cortázar, de García Marquez, de Paulo Freire, de Pasolini, de Buñuel e de Godard, tudo o que um garoto como eu, que já tinha decidido se tornar escritor, queria ouvir.
Nessa época eu carregava a crença de que, para me sentir adulto, tinha de beber cerveja e deixar crescer a barba. A cerveja era fácil. Bastava pegar o minguado dinheiro que recebia como office-boy e entrar em qualquer boteco de esquina – naquela época não havia a proibição do álcool para menores. Quanto à barba, eu teria de esperar um pouco, ainda que me esforçasse escanhoando o rosto glabro diariamente com o velho aparelho metálico do meu pai para que a barba crescesse com mais rapidez. Assim, passei a cultivar o hábito de tomar uma cerveja depois do expediente, antes da aula.
Um dia exagerei na dose e cheguei embriagado à escola – as duas primeiras aulas eram de história. Só lembro de ter adentrado a sala de aula, tudo o mais me vem como uma espessa nuvem de lembranças intermitentes. Quando dei por mim, estava deitado numa espécie de maca improvisada, sendo cuidado por ninguém menos do que a professora de história, a Rosinha. Ela dizia alguma coisa que me soava distante, como se eu estivesse num sonho, e algo em seu semblante me passava preocupação com o meu estado. Mas terminava aí a lembrança, impregnada da sensação de bem estar por estar sendo o objeto da exclusiva atenção da minha musa.
Só retomei plenamente a consciência no Hospital Bandeirantes, no bairro da Liberdade, para onde fui levado por um aluno mais velho que tinha carro. Só ali, enquanto tomava glicose na veia, é que me dei conta do vexame que protagonizara. O aluno ainda me levaria em casa, onde cheguei sóbrio, disfarçando o andar ainda trôpego para que meus pais não soubessem do ocorrido. E eles nunca souberam.
No dia seguinte, ao chegar à escola, ainda nos corredores ouvi o relato bem humorado dos alunos. Disseram que abusei de falar bobagens, que gargalhei e chamei a atenção do andar inteiro. E, claro, que regurgitei a porção de fritas que havia ingerido junto com a cerveja. Só não me contaram o principal: que, no meu delírio etílico, eu me declarara várias vezes para a professora, dando pistas inequívocas sobre o motivo do meu porre. Tudo porém ficou na conta de um rito de passagem, o garoto quieto e estudioso (hoje diriam cdf) querendo mostrar que já era adulto.
Aquele episódio me aproximou da Rosinha. Nas aulas seguintes ela passou a me tratar com familiaridade, uma familiaridade quase maternal, com a qual até então eu não estava acostumado. Mas nada além do carinho da professora politizada e sensível pelo aluno que procurava afirmar sua identidade. O que pudesse haver além disso ficava por conta da minha prodigiosa imaginação.
Essa familiaridade fez com que eu criasse coragem e fizesse uma coisa que vinha ensaiando havia dias. Como estávamos no fim do ano e teríamos apenas mais uma semana de aula, resolvi mostrar para a professora um conto que havia escrito, inspirado nos autores russos que vinha lendo. Talvez eu nunca mais fosse vê-la e inconscientemente quisesse deixar algo em sua lembrança um pouco mais digno do que o porre.
Rosinha gostou de saber que eu escrevia. Pegou as três folhas datilografadas, deu uma passada de olhos pelo texto e prometeu que o leria no fim de semana. Um fim de semana que passei com o coração opresso. Minha intenção era impressioná-la. Será que ela iria gostar? Talvez me convidasse para um café fora do ambiente da escola para falar de literatura.
Na segunda-feira, no fim de uma aula sôfrega para mim, em que ela não fez nenhuma menção de ter lido o conto, Rosinha veio até a minha carteira falar comigo. Disse que gostara muito do conto. Que os russos também estavam entre os seus preferidos. Que eu não deveria parar de escrever. E que tinha um autor para me indicar.
Pediu minha caneta emprestada e, na própria folha datilografada, escreveu o nome da obra e do autor: Conversa na Catedral, Mário Vargas Llosa.
– É um romancista peruano – falou. – Você precisa ler.
Olhei aqueles nomes cabalísticos sem questionar. Tudo que vinha da professora de história já trazia a chancela do sagrado. Por fim a aula terminou e nós nos despedimos na porta da sala com um abraço afetuoso. No dia seguinte, corri à biblioteca do Sesc Carmo e procurei o livro do escritor peruano do qual nunca ouvira falar. Lá estava ele, um catatau de quase seiscentas páginas, de capa dura, numa bela edição do Círculo do Livro.
Rosinha nunca soube, mas, inspirado por sua indicação – ou pela paixão que eu nutria por ela –, li Conversa na Catedral em menos de um mês, um tempo recorde para uma romance daquela envergadura e um menino da minha idade. Quando voltaram as aulas, soube que ela tinha se transferido para outra escola. Foi talvez a minha primeira grande frustração na vida amorosa. Por alguns dias circulei desnorteado pelos corredores, alimentando a esperança de rever a professora e poder contar sobre a leitura. Uma leitura que até hoje lembro como uma aula sobre como escrever, com seu jogo caótico de discursos diretos, indiretos e indiretos livres. Uma influência decisiva que nunca mais esqueci, de um escritor que me é muito caro e que venho lendo e relendo ao longo da vida. A funcionária da secretaria, porém, acabou com qualquer esperança que eu pudesse ter: informou que a Rosinha não tinha apenas mudado de escola, mas de cidade. Dava aula no interior agora.
Anos depois, ao escrever meu primeiro romance juvenil, Carpe Diem, dei o nome de Rosinha à professora de história combativa e libertária, mentora intelectual dos meninos detetives do romance. Um mimo de gratidão àquela paixão adolescente não correspondida, cuja memória ainda hoje guardo com a ternura do menino que fui um dia.

domingo, 8 de abril de 2012

Um dia vi Deus num bistrô - crônica


É secular a fama de arrogante da filosofia em oposição à fama de humilde da religião. Remonta, se não me engano, aos primórdios do cristianismo, ocasião em que as duas formas de pensamento puderam finalmente ombrear-se, justapondo seus prós e seus contras – pois antes havia apenas o lógos grego.
Mas, não, não vou entrar na areia movediça da discussão do mérito de uma e de outra modalidade de caminho para a salvação da alma, nesta vida ou em outra. Cada qual com o seu talvez, como dizia uma antiga colega de trabalho. Ainda que eu veja com reservas o ato de se colocar os desígnios da vida nas mãos de um suposto messias, reconheço que o cristianismo tem todo o mérito de ter sido o precursor da defesa da igualdade entre os seres humanos – ideia que seria um dos pilares da Revolução Francesa – e de ter incorporado à história do pensamento ocidental o conceito de livre-arbítrio, pelo qual a virtude deixa de ser algo natural para ser algo que depende da vontade dos homens, ou seja, não há mérito na virtude que não tenha podido escolher entre o bem e o mal. Não é pouca coisa quando se pensa que desses avanços derivam as ideias de democracia irrestrita e dos direitos humanos, impensáveis na pólis grega.
Contudo, neste domingo de Páscoa, não posso me furtar a lembrar a ocasião e as circunstâncias em que li uma das coisas que mais me impressionaram até hoje quando o assunto é a oposição entre religiosidade e pensamento laico.
Era sábado e eu estava num restaurante da Rua Veiga Filho, no bairro de Higienópolis. Era um desses bistrôs que estendem as cadeiras e as mesas até a calçada, ocupando boa parte dela. Fazia um final de manhã abafado, com uma leve brisa redentora vindo nos aliviar de instante a instante. O clima alvissareiro daquele período da semana emprestava ao trecho da rua um ar festivo, tornando o ambiente agradável. Enquanto aguardava meu prato, lia no JT uma entrevista do escritor colombiano Fernando Vallejo, por ocasião de sua vinda à Flip daquele ano.
Lá pelas tantas, uma garotinha maltrapilha, de uns sete ou oito anos, veio vindo pela calçada e entrou no restaurante. Começou a pedir dinheiro ou comida para as pessoas nas mesas. Fixei minhas lentes no movimento da menina e na reação das pessoas, que variava entre duas formas de negativa: umas esboçavam um semblante compungido enquanto outras a ignoravam completamente, como se a menina não existisse. Mas ela existia, e de forma incômoda continuou passando entre as mesas recebendo ora o olhar compungido, ora a indiferença glacial. Algumas vezes era enxotada.
Voltei os olhos para a entrevista. No trecho que lia, o repórter perguntava a Vallejo se ele acreditava em Deus. Sua resposta foi uma das coisas que jamais esqueci, pela combinação entre o que eu lia e o que acabara de presenciar: “Claro que acredito”, o escritor respondeu. “É só olhar à sua volta para você ver a maldade de Deus em toda parte”.
Assim que terminei de ler a resposta, procurei a menina. Ela não estava mais lá, já tinha saído do bistrô. Avistei-a longe, inocentemente ziguezagueando pela calçada, como se brincasse consigo mesma, enfrentando com uma resignação comovente o sol escaldante do meio dia. Certamente estava faminta, sem entender o que fazia neste mundo no qual não pediu para estar.
À minha volta, as pessoas continuavam a conversar alegremente. Falavam de futebol, de política, de roupas, de carros, de computadores, de shows de rock, de cursos, de empregos. Talvez falassem até de Deus. Como se Deus não tivesse passado por ali.

sábado, 31 de março de 2012

Esclarecimento


No ingresso ao meu atual emprego, em novembro último, fui vítima de um ato de discriminação, calúnia e difamação por uma ex-colega de trabalho e de faculdade, então diretora de uma das empresas da editora à qual eu estava ingressando.
Ferida em sua vaidade por eu não tê-la procurado para me valer do peso de seu cargo para conseguir emprego naquela casa editorial, e depois que eu já havia sido aprovado para o cargo de editor, sem ser consultada ela procurou meus empregadores para aconselhá-los a não me contratar sob o argumento de que, na condição de soropositivo, eu havia tido vários problemas no desempenho das minhas funções na editora onde ambos trabalhamos, e que esses problemas poderiam se repetir no novo emprego. Para acentuar a dúvida plantada na cabeça de meus superiores, disse ainda que sou uma pessoa "arrogante e desagradável".

São esses pontos que quero esclarecer:

1) Não é verdade que minha condição de hiv positivo tenha comprometido meu desempenho profissional na editora à qual minha ex-colega se refere, como podem comprovar meus inúmeros colegas, amigos, ex-superiores e autores cujos livros editei ao longo de dezessete anos. Tive, sim, problemas inerentes a essa condição, mas nada que impedisse um desempenho acima do satisfatório ao longo dos treze anos nos quais ainda permaneci nessa editora após o diagnóstico da síndrome. Desde então, escrevi cinco livros (um deles relatando a experiência da doença), fiz uma graduação em jornalismo, uma pós-graduação em ciências sociais e estou em via de iniciar outra pós.

2) Estou há cinco meses no emprego ao qual minha ex-colega tentou impedir meu ingresso. A previsão de que meu desempenho seria comprometido pela Aids não se confirmou. Pelo contrário, nesse período conquistei o respeito e a confiança dos meus empregadores e dos autores com os quais venho trabalhando, exercendo com plenitude e a contento as funções que me são atribuídas.

3) Nunca tive problema de qualquer ordem com essa ex-colega. No meu livro sobre a experiência com o hiv, publicado em 2000 pela editora na qual ambos trabalhávamos, ela teve um emocionante depoimento publicado na obra, por ter sido a primeira pessoa a quem mostrei os originais do relato. De lá para cá, esteve em dois lançamentos de livros meus, sempre demonstrando admiração e respeito por mim, que eram recíprocos. Credito seu ato ao deslumbre com o pequeno poder e ao desprezo que certas pessoas passam a cultivar em relação a seus ex-colegas quando ascendem na hierarquia, desprezo que só medra na mente dos que não possuem o preparo, a serenidade e o equilíbrio adequados para ocupar os cargos que ocupam.

4) Estou bem de saúde, entusiasmado com o trabalho e com a vida, disposição que, combinada com os recursos da medicina, têm me ajudado a superar as questões da soropositividade e a levar uma vida praticamente normal.

5) Quanto à discriminação, à calúnia e à difamação, caberia processo, pois se trata de crime tipificado no Código Penal, mas não vou e não quero mexer com isso, pelo desgaste que implicaria. Julgo importante, porém, fazer esse esclarecimento, sem o qual eu não ficaria tranquilo com a minha consciência nem me sentiria digno diante de mim mesmo.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O olhar do Kassab - crônica em três atos


Para Paula Ribeiro Iauch

Primeiro ato
Ontem, por acaso, flagrei o momento em que uma viatura da Rota parou numa esquina dos Campos Elíseos para vistoriar três moradores de rua que passavam na calçada. Um deles levava um saco com badulaques e pude ver com nitidez seu olhar atônito ao tentar explicar para os policiais que eram objetos pessoais ou algo que o valha, e não fruto de roubo. Cena recorrente na região, mas que assume uma dimensão trágica e real quando a presenciamos.
Não esperei para ver o desfecho do episódio, embora saiba que quase sempre resulta em reprimendas enérgicas, humilhação, violência covarde e, em caso de suspeita, um passeio no camburão até a delegacia.

Segundo ato
Há coisa de um ano, a caminho do trabalho, passava ao lado da carcaça de um carro abandonado na Rua Albuquerque Lins, ao lado do Teatro São Pedro. Há dois meses, percebi que havia gente lá dentro, apesar de os vidros do carro terem insulfim. Mais alguns dias passando ali e entendi a situação. Um casal de moradores de rua, com duas crianças pequenas, passou a usar a carcaça do carro como moradia. O carro estava estropiado, mas os bancos estavam conservados.
Como passava sempre de manhã, às vezes encontrava a mulher sentada no banco do carona, com a porta do carro aberta, fumando. Era uma mulher de uns trinta anos, mas que pareciam sessenta diante do sofrimento que adivinhava em sua face encarquilhada. Enquanto ela fumava, as crianças descobriam graça no entorno eminentemente urbano da rua.
Algumas vezes vi seu companheiro, um homem igualmente envelhecido, dando a primeira tragada no cigarro, sentado na escadaria lateral do teatro. Pelo ar dos dois, imaginava que dormissem no carro à noite, fazendo do banco de trás local de descanso e sexo. As crianças, deduzi, deviam dormir nos bancos da frente.
Durante o dia, sabe-se lá o que o casal fazia. Pelos trajes que ostentavam, não acredito que tivessem empregos formais. Alguns transeuntes, sensibilizados sobretudo com as crianças, às vezes lhes deixavam lanches ou quentinhas. Cheguei a ver uma senhora entregando o que entendi ser uma mamadeira para a mulher.
Há duas semanas, ao dobrar a esquina do teatro, deparei com a carcaça do carro completamente destruída pelo fogo. Alguém deve ter jogado uma grande quantidade de líquido inflamável de modo a não sobrar nada do carro. E, de fato, o que eu via agora era apenas a estrutura de aço do carro, a parte que o fogo não consumiu. Do casal e de seus dois filhos, nem sinal.

Terceiro ato
Ontem, entre as notícias frívolas do carnaval, vi uma foto do prefeito Gilberto Kassab posando ao lado de três foliãs no sambódromo. O olhar das moças brilhava de emoção por estarem ao lado do alcaide da cidade. Alcaide que, há três semanas, doou um enorme terreno na região da Cracolândia para que o ex-presidente Lula construa um surreal instituto que levará seu nome. Um pequeno afago com o patrimônio púbico com vista a um espúrio conchavo político.
Passei o dia pensando no olhar das foliãs. E no olhar do Kassab, que não brilhava menos do que o olhar das meninas. Aqueles olhos azuis, falsamente infantis, representam muita coisa. Simbolizam o deslumbramento fútil dos que estão no poder. E a mediocridade da época em que vivemos. Simbolizam sobretudo a insensibilidade dos governantes com a sorte daqueles que não existem. Daqueles que apenas vivem. Como vivem os cães sem dono, os ratos, as baratas.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Ciclos - crônica


 Nada mais saudável do que o fim de um ciclo e o início de outro. E a intuição, velha companheira de jornada, não nos deixa enganar. Sempre sabemos quando estamos fazendo a passagem. Podemos até não agir de imediato conforme a nova disposição que nos move, mas no fundo sentimos que algo ficou perdido no tempo, não raro para sempre. E que algo está por vir.
Houve um tempo em que meus interesses giravam em torno do futebol. No final dos anos 1970, premido pelas perseguições que sofria na escola (claramente bullying), enfiei na cabeça que seria jogador de futebol, uma forma de ir à forra contra os que me molestavam na sala de aula. Larguei tudo, família, escola, amigos, e fui para Curitiba, morar na casa de um tio e treinar no infanto-juvenl do antigo Pinheiros (atual Paraná Clube).
A empreitada tinha tudo para dar errado, e deu. Fiquei ainda um tempo zaranzando por Curitiba e Paranaguá até voltar para São Paulo, arranjar um emprego de office-boy e retomar os estudos. Era um novo ciclo que se anunciava, mas embutido nele havia um ciclo maior, que me acompanharia pela vida afora: o da leitura e escrita.
Os ciclos possuem essa característica: para passar de um a outro é preciso esgotar todas as possibilidades e ilusões do ciclo que termina. Em outras palavras, para fazer a travessia é preciso experimentar uma certa crise pessoal. Nesse sentido, assumir que um ciclo terminou requer humildade. É aquele momento em que reconhecemos, num ato de absoluta sinceridade, que nossa vida está seguindo um rumo equivocado, que precisamos interpretar com objetividade e sabedoria os recorrentes fracassos; que, enfim, está na hora de rever os conceitos. E mudar.
O ciclo da leitura e escrita foi tão forte para mim que, terminado o ensino médio, decidi que não precisava fazer faculdade. Para que faculdade, me perguntava, se eu lia os grandes autores da literatura mundial? Para mim, era o que bastava. Foi a época do mergulho radical na literatura russa, com seus romances ferozmente impregnados de tragédia e paixão. Eu não queria outra atmosfera naquele momento da minha existência.
No entanto, alheios à nossa vontade, dialeticamente os ciclos se sucedem, se intercalam, se contradizem, se sobrepõem, fazendo-nos superar nosso entendimento do mundo e forçando-nos a seguir em frente. Isso é o que, depois, iremos chamar de “vida”.Ou de “a minha vida”. De modo que fui vivenciando os ciclos que a vida me apresentava. O de jovem recém-casado. O de jovem pai. O de pai coruja. O de filho maduro. O de filho sem pai e mãe. O de ouvinte de MPB. O de editor. O de escritor. O de soropositivo. O de estudante de jornalismo. O de homem separado.
Como no mito do eterno retorno do Nietzsche, inexoravelmente as coisas voltam. E nos últimos seis anos, morando sozinho, vivenciei novamente o ciclo do namorado que fui um dia, com todos os rituais da circunstância: o flerte, o pedido de namoro, a apresentação aos pais da garota (alguns deles da minha idade ou até mais novos), as descobertas, o estado de graça, o amor, que também é feito de conflitos e desavenças. E depois o caminho inverso. O melancólico caminho inverso. Eterno retorno.
Esta semana vivi o fim de um namoro, o terceiro nesses seis anos em que moro sozinho. Mas não foi somente o fim de um namoro. Foi o fim de um ciclo. É tão concreto para mim que tenho vontade de rir da minha sagacidade em percebê-lo. Não há o que lamentar. Nada mais saudável do que o fim de um ciclo e o começo de outro. Na vida, como na natureza, nada se perde, tudo se transforma. E, pelo menos no meu caso, os amores vão se transformando em amizades. Amizades especiais e perenes.
Nada se perde.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Parabéns, tudo de bom! - crônica


Adriana se vira de lado na cama. Vê o marido com o smartphone em punho.
– O que está fazendo, Murilo?
– Estou no face, amor.
– Mas a essa hora da manhã!
– Hoje é meu aniversário, esqueceu?
– Claro que não, né.
– Pois é. E hoje eu me impus uma missão.
– Missão?
– É. Quero ver quem vai me mandar mensagem de parabéns e quem não vai. Vou descobrir quem é meu amigo de verdade. Depois vou catalogar tudo e ver o que fazer.
Adriana puxa o rosto do marido para si:
– Murilo, você pirou?

À uma da tarde, Adriana tem a certeza de que o marido não está num dia bom:
– Murilo, dá pra largar esse maldito celular um pouquinho e vir almoçar?
– Só um minuto, querida, chegaram mais duas mensagens. Da Raquel Gontijo e da Luciana Bezerra. Gosto delas. Mas aposto que a falsona da Berenice não vai me mandar nenhuma mensagem. Ela sabe que hoje é o meu níver, mas vai fazer questão de esquecer. Ela sempre dá essas mancadas.
– Murilo, o almoço está esfriando...
– No aniversário dela eu enviei uma mensagem bacana logo de manhã, de cinco linhas...
– Você fez a sua parte, oras... Agora vem comer, por favor...
– Olha só quem acabou de enviar os cumprimentos. Tudo bem que foi só um “parabéns, tudo de bom!”, mas pelo menos ela lembrou...
– Quem?
– A Ana.
– A Ana Renata? Ou a Ana Rebeca?
– Não, a Ana Júlia.
– Pfff...
– Que foi?
– Tô vendo que você ficou todo contentinho com um simples parabéns da sua ex.
– Nada a ver, more, não vai ficar com ciúmes logo hoje, né... Pelo menos ela lembrou. A Maria Leocádia, que trabalha dez horas por dia do meu lado, até agora nada.
– Mas ainda é uma da tarde, criatura! Não sei o que deu em você hoje. Não sei por que essa neura toda. No ano passado você não estava assim.
– No ano passado eu não estava no facebook. Mas agora que estou, decidi que só vai ficar na minha página quem for meu amigo de verdade.
Adriana solta mais um “pfff”, mas parece que o Murilo não ouve.

Ás cinco da tarde, Adriana desperta de um cochilo com os gritos do Murilo:
– Ganhei meu dia, Adri! Ganhei meu dia! – exulta o marido.
– O que foi dessa vez, meu Deus?
Ele estende o celular na frente da mulher:
– O Perón, meu gerente! Acabou de me enviar os parabéns! Sabe o que isso significa, Adri?
– Hum?
– Que aquele aumento vai rolar...
– Não viaja, Murilo...
– Ele me considera, amor. Sempre senti isso. Senão não mandava a mensagem. Aposto que para o Silvano ele nem mandou mensagem de aniversário...
– O aniversário do Silvano é no mês que vem...
– Como você sabe?
– Não foi você que disse que o Silvano é de escorpião? Ele deve fazer aniversário em novembro. Estamos em outubro...
– Eu disse isso?
Disse.

Às sete, Murilo já tem um mapa mais definido da situação. Entre mais de cinquenta cumprimentos, estão lá as mensagens da Sônia (“mandou só pra não ficar chato...”), da Ana Renata, da Ana Rebeca ("essa é amigona mesmo..."), da Cibele, do Rubão e da Maria Tereza.
Berenice mandou uma mensagem afetuosa de quatro linhas no fim da tarde. Já da Maria Leucádia, nem sinal de cumprimento. Murilo só está esperando dar meia-noite para deletá-la da sua página. Vem pensando mesmo em fazer isso. Só precisava de um pretexto.
– Imagina, ainda outro dia ela jantou aqui com a gente... Ingrata! – resmunga consigo mesmo.
Remói por mais de uma hora aqueles pensamentos cheios de fel até que não se contém. Procura a página da Maria Leucádia, vai no item “excluir amigos” e deleta-a a ex-amiga sem remorsos, como quem dá um piparote numa mosca.
– Pronto! De agora em diante, nada de amigos falsos na minha vida! Only good vibe!
Mal pensa isso, a campainha toca. Como Adriana estava no banho, ele mesmo abre a porta. Dá de cara com Maria Leocádia, que, com um presente nas mãos (provavelmente um livro ou um DVD) e um sorriso indefensável nos lábios, lhe diz:
– Feliz aniversário, querido!
E o puxa para um abraço apertado.

sábado, 7 de janeiro de 2012

No café - crônica


No café discreto em que estou – tão discreto que me sinto à parte da vida –, um casal com sua filha deficiente se sentam na mesa ao lado. O homem e a mulher aparentam a mesma idade, em torno de quarenta anos. A menina não deve ter mais do que quinze.
Não tenho conhecimento médico para identificar o problema que acomete a garota. Seu rosto apresenta um afundamento lateral que compromete estética e funcionalmente a boca e o olho esquerdo. Vejo cicatrizes de contornos irregulares, na certa tentativas da medicina de amenizar o impacto que aquela face causa em quem a contempla.
A garota traja tênis all star, calça jeans com rasgos calculados e uma camiseta com o rosto da Amy Winehouse. Na testa, uma franja coquete rente às sobrancelhas. Pelo contexto da conversa, deduzo que a menina cursa o ensino médio.
Percebo que o rosto da garota chama a atenção de imediato. O olhar das pessoas, tão logo o divisam, voltam-se para verificar a natureza da deformidade. Passado o choque, a reação fica por conta da discrição de cada um.
Chama minha atenção a abnegação dos pais para que a filha sofra o menos possível os efeitos sociais de seu infortúnio. O que se apresenta a mim naquele café é apenas a curta sequência de um pungente filme sobre devoção e entrega. Essa abnegação fica patente quando a garçonete se aproxima para anotar o pedido. Observo que a garota não faz cerimônia e, com uma certa graça, pede algo que a garçonete não entende.
–Desculpe... – a moça hesita, entre simpática e aflita, e volta-se num olhar súplice para os pais.
O pai compreende o embaraço:
– Ela quer saber se vocês servem bureka... – ele diz, num sorriso constrangido, que, presumo, afeta desconforto, como se a garota se expressasse num dialeto desconhecido e a ele coubesse o papel de tradutor-intérprete.
– Desculpe, senhor... – a garçonete tartamudeia, ante o olhar ansioso da garota.
Antes que o pai explique à garçonete o que é bureka, ao seu modo a garota tenta explicar seu pedido, mas é interceptada com rudeza calculada pelo pai (“Eu explico pra ela, Muriel...”).
– Desculpe, moça, – volta-se o pai – a gente sabe que não é em todo lugar que tem bureka.
E, voltando-se para a filha, explica a ela que não servem bureka ali.
Muriel faz um muxoxo de decepção. E sem perceber a aflição da garçonete, logo se refaz e dá um pulinho na cadeira, voltando os olhos para o cardápio.
– Nós já faremos o pedido – diz então o pai, um modo de liberar a moça e ganhar tempo para a escolha da filha.
O olhar do pai quase cruza com o meu. Disfarço que os observo. Na verdade fujo daquele olhar.
Gosto de imaginar as histórias silenciosas que correm, como rios subterrâneos, por trás das conversas que ouço. Tudo levado a termo de forma discreta, sem nenhum propósito de julgamento.
A garota age como se não tivesse as limitações de comunicação que tem. E a atitude do pai, de servir de intermediário, deve ser rotina na vida daquela pequena família. Uma terna compaixão começa a tomar forma dentro de mim.
A imagem me remete aos passeios que dava com minha filha, ao tempo em que ela era pequena, com menos idade ainda do que Muriel. Um período que se apresenta comprimido na memória, como se tivesse sido de apenas alguns meses.
Em minutos a garçonete volta para anotar o pedido. O pai mais uma vez procura facilitar as coisas, e faz um arrazoado do que cada um vai querer:
– Dois cafés puros, um chocolate médio, duas baguetes com manteiga e um croissant quatro queijos, por favor.
Refeita de sua aflição, a garçonete anota tudo. E antes que se retire, ouve a única palavra dita por Muriel que não precisa ser traduzida pelo pai:
– Obrigada.
Desvio de vez meu olhar e tento voltar aos pensamentos que me tomavam antes de notar a presença do casal. Não consigo, porém. Devia estar imerso em algo sem importância. Um desses pensamentos que nos fazem ficar horas e horas num café sem fazer nada e depois evaporam da mente para nunca mais.
De Muriel e de seus pais abnegados, contudo, eu nunca vou esquecer.