domingo, 12 de junho de 2011

trecho de "Todo menino é um rei"

"Assim que começamos a caminhar, lentamente como costuma ser num enterro, os pais da Corina foram se distanciando até ficar uns três metros na nossa frente. Ou nós é que fomos nos deixando ficar para trás. Me fez bem imaginar essa hipótese. O único problema é que o Marcelo também acompanhou nosso ritmo e ficou para trás junto com a gente. Logo percebi que aquele moleque com cara de sonso era mais esperto do que eu pensava.
O negócio agora era prolongar a conversa. Eu já procurava um assunto, quando ouvi a Corina dizer:
– Nunca tinha vindo nesse cemitério.
Não era o assunto que eu tinha pensado, mas estava valendo.
– E eu nunca entrei num – eu disse.
E não estava mentindo. Cemitério eu só conhecia dos filmes de terror. Não gostava nem de passar em frente. Nunca me esqueço do tremor que senti no dia em que um vendedor passou de porta em porta na minha rua oferecendo jazigos a prestação.
– Sério? – Corina pareceu se espantar. – Pois eu estive num cemitério uma única vez, há três anos. Foi no enterro do meu avô.
Eu me lembrava do velório do avô dela, seu Miguel, pai da dona Dirce. Foi um acontecimento muito comentado no bairro. Seu Miguel era militar. Diziam que tinha torturado presos políticos uns anos atrás. Eu não entendia bem o que isso significava. A única coisa que sabia era que seu Miguel era uma pessoa temida e respeitada nas redondezas. Mais até do que o Tito, que tinha uma fama mais ou menos parecida.
Naquele dia, quando cheguei em casa com a notícia da morte do seu Miguel, minha mãe disse uma coisa que não era muito comum ouvir dela:
– Esse vai pro inferno de cabeça pra baixo.
– O quê? – perguntei, pois tinha gostado da frase e queria que ela a repetisse.
– Nada, não, menino... Vai brincar, vai!
Muito tempo depois, comentei com meus pais sobre o que falavam do Tito e do seu Miguel na rua. Perguntei se era verdade. Meus pais nada responderam. Apenas disseram para eu nunca comentar sobre aquilo com ninguém.
No dia em que disseram isso, não deixei de perceber um certo medo neles. Um medo misterioso de alguma coisa que eu não sabia o que era, mas que me pareceu algo grave. E se eles me pediram para não falar com ninguém sobre o assunto, não seria com a Corina que eu iria falar daquilo naquele momento.
– Eu fui no velório do seu avô, mas não ao enterro – falei apenas.
– Tenho saudades dele – Corina disse de repente, quase como se falasse apenas consigo mesma. – Quando ia na casa dele, ele me levava na padaria e deixava escolher os doces que quisesse.
O assunto não era dos mais animadores. Pelo menos pra mim. Mas eu não podia demonstrar isso.
– Ele morreu do quê?
– Do coração. Teve um ataque fulminante durante o sono. Morreu dormindo.
– Bom, pelo menos não sofreu.
– Não, pelo menos isso – ela disse, depois deu um suspiro. – Ele morreu em paz.
Quando ela disse isso, voltei a pensar nas coisas que falavam de seu Miguel. Será que a Corina sabia dos horrores que falavam do seu avô? Fiquei tentado a perguntar, mas por fim segui o conselho dos meus pais e não disse nada. Acho que fiz bem."