quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A senhorinha da livraria (crônica - janeiro 2011)

Já experimentei os mais díspares sentimentos em relação a ela: raiva, piedade, irritação, exaspero. Atualmente ando na fase da complacência e espero que este seja o definitivo.
Acontece sempre: mal ponho os pés na livraria e já pressinto seu vulto caminhando na minha direção. Reconheço aquele vulto pelos passos claudicantes, ritmados pela picada de sua bengala contra o chão.
Sou um frequentador chato de livraria. Quase nunca tenho em mente um livro para comprar. Mas raramente deixo a livraria sem um exemplar debaixo do braço. Gosto de assuntar aleatoriamente o que está exposto. Folhear, verificar tradutor, projeto gráfico, capa, tamanho da letra. Gosto sobretudo de ser surpreendido com aquele romance que procurava há décadas oferecido a preço módico. Ela, contudo, parece não entender minhas peculiaridades. Se aproxima e lança a pergunta que me faz há pelo menos quatro anos:
– Já encontrou o livro que procura, senhor?
– Obrigado, estou dando uma olhada geral – é a minha resposta de algibeira, dada também há pelo menos quatro anos.
Não é possível que já não tenha gravado minha fisionomia. O hábito, porém, é mais forte que ela. Já ocorreu de, no mesmo dia, ela esquecer que já havia me abordado e me interpelar novamente, com o mesmo ar respeitoso e simpático.
Minha resposta não é de todo insincera. Tampouco indelicada. Mas também não é uma resposta precisa. “Dar uma olhada geral” é uma expressão distante do caráter de ritual que confiro às minhas incursões às livrarias. E antes que identifique o sentimento que me toma dessa vez, ela se afasta, deixando no ar a frase com que sempre conclui a abordagem:
– Pois não, fique à vontade.
De vez em quando ela muda o script e arrisca um palpite:
– Já leu este? – diz, pegando o primeiro best seller que vê na prateleira.
– Já sim, muito bom – minto, para não alongar a conversa.
Ela então se afasta, com a clara satisfação do dever cumprido estampada no rosto.
De tanto ouvi-la proferir a mesma pergunta, deduzo que seja uma funcionária de honra da livraria, ou algo que o valha. Deve ter por volta de 80 anos e, pelo modo elegante como se desloca e interpela os clientes, presumo que, por vários anos, tenha sido uma eficiente gerente da loja, dessas que dedicam a vida à empresa – fato cada vez mais raro no mundo de hoje.
Se minhas hipóteses estiverem certas, acho louvável a atitude da livraria. Precisamos de gente humana no atendimento, principalmente em se tratando de livraria. Livro não é um Grill George Foreman, xampu anticaspa ou ração para cachorros, como nos querem fazer crer os diretores de marketing. É um produto simbólico, com repercussão social.
De todo modo, se a simpática senhora mais atrapalha do que ajuda, ao menos é de uma educação irretocável, coisa também cada vez mais rara hoje em dia. Com a vantagem de que fala me olhando nos olhos, não usa de gerundismo, não me chama de “chefe”, “patrão”, “campeão”, “grande” e nem diz que determinado livro é “show de bola”.
Certa feita, num dia de má veneta, ao ser abordado por ela, resolvi desafiá-la.
– Já encontrou o livro que procura, senhor? – ela veio com seu mantra.
– Ainda não – devolvi, com ar maroto. – Estou procurando o novo livro do Nicolau Sevcenko. A senhora sabe em que prateleira posso encontrá-lo?
– O senhor, por favor, fale com a vendedora – ela respondeu, fleumática como uma esfinge grega, apontando uma das atendentes.
Resignei-me, complacente e desarmado, e fui falar com a vendedora.

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