terça-feira, 8 de março de 2011

Funduras - conto (c.1987)

Eu só pude entendê-la por completo quando a vi no caixão, o rosto duro, as narinas atochadas de algodão, os olhos bistrados, como a censurar-me por não tê-la amado como devia em vida, um fio de sangue, pálido feito mostarda aguada, a escorrer pelo canto da boca, a pele calcinada, as unhas roxas. Em torno, fantasmas. Era de manhã.
Depois que o corpo desceu ao jazigo e a sepultura foi chumbada, espantei-me com a alegria que as sobras da manhã me prometiam, apesar de. Saí caminhando sozinho, deixei os fantasmas para trás e percorri toda a calçada de muro branco do cemitério. Depois de tudo, o que mais queria era andar.
O vento que soprava era um acinte. Roçava-me o rosto, arrastava pensamentos, lembranças, como se fossem correntes. Os pardais aterrissavam em bando na fronde das árvores esquálidas. Um sol já alto me aquecia. Ciganear pelas ruas do bairro desconhecido.
Por muito tempo não quis encontrar gente, deparar rostos. Procurei as ruas mais desertas, as vilas mais recônditas, viadutos sujos e anônimos, até chegar a uma praça, o mato crescendo entre as frestas no cimentado, formigas alheias a tudo. Perdi a noção das horas. Espraiar o olhar e não pensar em nada.
Não sei quanto tempo ali sentado, pensando nela, agora envolvida no mistério. Estranho como tudo mudou, e o que antes era, agora não é, e o que antes parecia, agora não parece. Podíamos ter sido, não fomos. Podíamos ter feito, não fizemos. Podíamos ter vivido, não vivemos. Nunca mais a esperança de viver o que nunca vivemos.
Fazia calor e as sobras da manhã iam se esmaecendo. A vida acordava aos poucos. Era preciso acordar o resto de vida em mim. Pensar cores brancas, a cal das paredes, a luz do sol entrando pela fresta da memória, risadas soltas, gargalhadas, uma frase que ficou para sempre, outra que se perdeu, preciosa, passos na rua numa noite fria, uma reza, o desvelo à noite no escuro do quarto, uma esperança perdida, o corpo branco estirado no corredor, iluminado de juventude e do sol que batia, a vida, a vida.

Um comentário:

Unknown disse...

Chorei.
Muito lindo.