terça-feira, 26 de junho de 2012

Eu sou Clara Crocodilo - conto kafkiano (2001)


            Meu corpo sofreu transmutações, mas minha mente permanece intacta. Intacta e lúcida. Até quando intacta e até quando lúcida, ainda não sei. Aproveito que tem visita na sala para colocar tudo no papel, antes que seja tarde. Antes que meu lado humano capitule e meu lado sáurio prevaleça.
            Tudo teve início numa tarde ensolarada de sábado, em que saí com minha filha para irmos à feira de antiguidades da Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. Quem mora em São Paulo conhece essa feira. Nela se encontram desde aros antigos de óculos, como os que eu usava na tarde em que tudo aconteceu, até fotografias da São Paulo de outrora; de talheres de prata do começo do século 20, a livros e revistas raros e discos de vinil. As bolachas de vinil, depois que inventaram o CD, viraram o meu obcecado objeto de desejo. Passei a visitar sebos e antiquários e a comprar tudo o que não pudera comprar de vinil na adolescência, pois na época os discos eram caros e eu dependia do parco dinheiro que meus pais me davam, que mal dava para o cinema nos finais de semana.
            Como sempre fazia, naquele sábado parei em todas as barracas onde houvesse discos, na horizontal ou na vertical, para garimpar o que me interessasse. Obviamente acossado por minha filha, que não gostava que eu me demorasse, pois queria assuntar as barracas de esoterismo, o motivo por sua vez de seu obsessivo interesse, apesar de ter apenas doze anos de idade. Eu via com bons olhos essa curiosidade dela pelas ciências ocultas. Ela já havia lido os três volumes de Harry Potter e vivia trocando mensagens na Internet com quem se interessava por assuntos de bruxaria. Não achava que fosse um mau começo para uma adolescente que recebia diariamente toda a carga de lixo cultural que a mídia mais e mais despeja na mente dos jovens.
            Eu satisfazia o desejo de minha filha, ia com ela até a barraca de ocultismo, esperava com enfado que ela olhasse artigo por artigo daquele universo que nada me dizia ao intelecto, mas obstinadamente logo voltava para as tendas de discos de vinil e passava a revolver com os dedos ágeis que possuía as preciosidades que de um momento para outro pudessem saltar à minha frente. Como vêem, eu era um sujeito normal, que levava uma vida normal, salvo algumas extravagâncias. Um humano. Um homem humano. Mas agora todos pensam que estou morto. Sim, todos pensam isso, porque depois dos acontecimentos insólitos daquele sábado, nunca mais pude pôr os pés para fora de casa. Somente minha filha e minha mulher sabem o que se passou comigo naquele dia, embora não se conformem com o rumo dos fatos e não entendam de fato o que realmente aconteceu. Nem eu próprio, a maior vítima na história toda, consigo na verdade entender. Mas elas me amam e sei que pelo menos tenho a garantia de que jamais irão me abandonar. É o que me mantém vivo.

            Naquele sábado promissor, na feirinha de antiguidades, eu fuçava uma enorme pilha de discos antigos quando bati os olhos num que há muito tempo procurava: Clara Crocodilo, do Arrigo Barnabé.
            Ao ver o disco, minha respiração alterou-se. Junto dele havia outros dois discos do Arrigo, Tubarões voadores e Uga-Uga, mas estes não me interessavam naquele momento. Apenas o Clara, com seu atonalismo radical e a capa antológica feita pelo Luiz Gê, me dizia respeito. Era um disco que eu comprara em 1981, ano em que muita coisa mudou na minha vida, e que eu ouvira alucinadamente nas minhas tardes e noites de solidão. Nesse ano atingi a maioridade, minha mãe descobriu que tinha câncer e li Recordações da casa dos mortos, do Dostoiévski, um livro que mexeu muito comigo na época e ainda mexe. Foi um ano crucial na minha formação, e fico pensando se muitos dos acontecimentos que nele se deram não houvessem ocorrido, no que eu teria me transformado.
            Mais do que depressa puxei o álbum para fora da pilha e tirei o disco para verificar seu estado. Novinho em folha. Parecia até que nunca tinha sido executado. Suas partes estalavam de intactas. O plástico de proteção se encontrava incólume. O dono da barraca, um sujeito simpático, percebendo minha perturbação, tratou logo de se aproximar, enxergando em mim o típico farejador de preciosidades que pagaria os tubos por uma obra rara como aquela. Disfarcei o grau do meu interesse e perguntei-lhe o preço do disco, fazendo ar de quem não está muito tentado a levar, a não ser que o preço fosse razoável. Quinze reais, ele disse. Salgado. Pedi um desconto. Ele baixou para doze, até que foi generoso. Mas continuava salgado. Ofereci dez. Ele ensaiou um amuo. Fechamos em onze. Dei-lhe vinte reais. Ele estava sem troco. Levei o disco por dez.
            Percebem? Até nisso eu era um sujeito normal, pechinchava sempre que entrevia uma brecha para isso.

            Minha mulher me interrompe para perguntar se vou querer rã ou passarinho no almoço. Digo que rã; ontem almocei passarinho. A semana toda almocei passarinho. Ela ainda não se habituou a essa faceta réptil da minha nova condição, mas prefere me ver degustando um delicado passarinho a um repelente camundongo, como seria de minha vontade. Para não vê-la ainda mais aflita, satisfaço-me com afáveis passarinhos, ou, como hoje, com as rãs.
            Ela está com visitas na sala e sabe que, para que não descubram que vivo escondido neste quarto, às vezes deixo de pedir as coisas de que preciso, mesmo coisas básicas e vitais como o almoço do dia. Mas não estou propriamente com fome. Nesse instante estou dominado por esta fúria incontrolável de contar o que se passou comigo desde aquele fatídico sábado. Nunca contei a ninguém essa história, porque ninguém iria acreditar nela e eu ainda seria tomado por louco. Escrevendo, pelo menos se amanhã eu morrer de verdade, minha mulher e minha filha poderão mostrar o escrito para algum editor e a memória do marido e do pai que eu fui um dia poderão ser resgatadas. Pois a memória do que eu fui antes de me transubstanciar neste ser extravagante é a única coisa que me importa nesse momento. Por isso escrevo. E se o livro acaso virar best seller, ao menos elas terão com que se sustentar.

            Pego o prato com a rã que minha mulher traz furtivamente até o quarto e volto às lembranças daquele dia. Saí da feira com o coração sobressaltado. Minha filha também estava eufórica, pois eu lhe havia comprado um jogo de tarô, um sino dos ventos e um chapéu de estilo francês que ela cortejava. Entramos no carro como duas crianças que haviam acabado de ganhar presentes com os quais há muito tempo sonhavam: ela com o chapéu francês e o jogo de tarô; eu, com o Clara Crocodilo e sua música dodecafônica que havia anos não ouvia. Não via a hora de chegar em casa e pô-lo para tocar.
            Fiz o percurso em tempo recorde. De vez em quando olhava para o banco de trás, onde colocara o disco, para me certificar de que não estava sonhando. Em meia hora entrava com o carro pela garagem de casa. Minha ansiedade era tanta que por pouco não atropelei um cachorro, que insistia em defecar justamente no espaço destinado à passagem do carro. Buzinei três vezes, mas ele se encontrava no meio de sua escatológica empreitada. Ah, eu era humano, eu era demasiadamente humano, e entre os meus defeitos estava o da impaciência quando algum obstáculo se opunha em meu caminho. O pobre cachorro teve de se arrastar com sua merda pendurada pelo cu, pois eu investi com fúria contra ele, na minha pertinaz e quase neurótica obsessão em ouvir o disco.
            Entrei em casa e fui direto para a vitrola – não reparem, ainda não consigo deixar de usar vocábulo tão obsoleto. Sou filho de uma época. Todo mundo é. Mal podia esperar pelos primeiros acordes. Minha mulher estava no quarto, lendo um livro sobre mitologia grega. Ela havia descoberto recentemente os gregos e agora vivia para cima e para baixo com o livro de mitologia na mão.
            Como veem, não somente eu era um sujeito normal, como minha família, não obstante nossas obsessões, era uma família normal. Mas agora, depois de todo esse pesadelo, não sei o que vai ser de nós. Ainda não decidimos, minha mulher e eu, o que faremos em relação a mim. Talvez não façamos nada. Minha mulher continuará sua vida, como tem feito. Ela é funcionária pública, o que lhe garante alguns privilégios que nos são propícios neste momento. Não carece dizer que deixamos de ter relações sexuais em face da minha transmutação. Agora éramos de espécies diferentes, não podíamos transar. Ou não nos sentíamos à vontade para isso.
            Minha filha seguirá estudando, se formará – ela quer ser bióloga, apesar de sua faceta mística. Mas isso é uma questão que ela própria terá de resolver. Quanto a mim, a única coisa que posso fazer é escrever.
            Olha o que eu achei gritei para minha mulher, assim que entrei em casa, abrindo o tampo da vitrola e encaixando o disco.
            – Estou lendo, depois eu vejo – ela me respondeu do quarto, preguiçosamente, não querendo levantar-se.
            Resolvi não amolá-la.
            Coloquei a primeira música do lado A: “Acapulco Drive-In”. Me arrepiei todo. As vozes agudas do coro feminino penetravam a sala como agulhas, finíssimas, afinadíssimas.

            Boca da noite, boquinha de gata
            Chupando, mordendo, bala de conhaque

            Logo a voz rascante do Arrigo se fez ouvir.
            Em “Orgasmo total” ela irrompeu no ambiente da sala com violência, como os augúrios de aves noturnas pressagiando acontecimentos funestos. Quando entrou a terceira faixa, “Diversões eletrônicas”, eu já estava tomado do mesmo estado de espírito que experimentara há vinte anos:

            Só você não viu
            Mas ela entrou, entrou com tudo
            Naquele antro sujo
            Você nunca imaginou, mas eu vi,
            No luminoso estava escrito
            DIVERSÕES ELETRÔNICAS

            Acho que foi ali, sob o efeito daquela voz áspera, que teve início minha transformação, mas até então eu nada percebera. Hoje imagino que os primeiros sinais de minha estranha mutação devem ter se iniciado de modo lento, talvez pelas regiões mais íntimas da minha derme, não visíveis, e à medida que as músicas se sucederam, foram subindo, subindo, formando pápulas, ganhando contornos de rosáceas, até eu perceber a primeira lâmina esverdeada no dorso de minha mão. Achei estranho, Tetê Espíndola cantava “Sabor de veneno”, e foi ao colocar o lado B do disco que percebi aquela primeira lâmina.

            Você já viu aquela menina
            Que tem um balanço diferente
            Se você viu e reparou
            Ela tem um jeito de sorrir, de falar, de olhar
            Que me deixa louco
            Ah, eu fico louco

            Porém, não dei a atenção devida, envolvido que estava pela atmosfera da música, uma de minhas preferidas no disco todo. Se tivesse me dado conta da gravidade do que estava por vir, talvez tivesse interrompido a audição e evitado tudo o que sobreveio. Talvez, não tenho certeza. Mas como eu poderia imaginar? Principalmente não chegaria à ultima faixa do disco, a música que dava nome a ele, “Clara Crocodilo”, e que certamente foi o que consolidou a onda de inexplicáveis transmutações físicas que começaram a se operar em mim.
            A narração na voz de Regina Porto, depois que Durango, o protagonista da história, toma uma injeção, foi profética, e pode ser que, na minha embriaguez, eu a tenha levado a sério demais. Sou muito intenso em tudo que faço:

            E ele flutuou. Sim... flutuou para longe dali, envolvido numa sensação deliciosa. Mas, o que ele não sabia, é que estava sendo transformado num terrível monstro mutante, meio homem, meio réptil, vítima de um poderoso laboratório multinacional, que não hesitou em arruinar sua vida para conseguir seus maléficos intentos. Os cientistas haviam calculado tudo. Mas, o que eles não sabiam, é que aquele ser disforme conservava parte de sua consciência. E logo todo o seu poder se transformou em fúria e violência sobre-humana. Os cientistas foram os primeiros a conhecer sua ira. Depois, toda a cidade estremeceria ao ouvir falar em Clara Crocodilo.

            A essa altura, eu já não reconhecia mais a mim mesmo. Em seguida, a voz do Arrigo deu o tiro de misericórdia:

            São Paulo, 31 de dezembro de 1999. Falta pouco, pouco, muito pouco mesmo para o ano 2000 e você, ouvinte incauto, que no aconchego do seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou este disco na vitrola, você que, agora, aguarda ansiosamente o espoucar da champanha e o retinir das taças, você, inimigo mortal da angústia e do desespero, esteja preparado... o pesadelo começou. Sim, eu sei, você vai dizer que é sua imaginação, que você andou lendo muito gibi ultimamente, mas então por que suas mãos tremeram, tremeram, tremeram tanto quando você acendeu aquele cigarro... e por que você ficou tão pálido de repente? Será tudo isso fruto da sua imaginação? Não, meu amigo, vá ao banheiro agora, antes que seja tarde demais, porque neste mero disco que você comprou num sebo esteve aprisionado por mais de vinte anos o perigoso marginal, o delinquente, o fascínora, o inimigo público número 1, Clara Crocodilo...

            Entrei numa espécie de transe hipnótico, como se alguém ou algo tivesse invadido minha mente para dominá-la. Ou, hipótese muito provável, como se algum ser estivesse adormecido em meu subconsciente e à audição de “Clara Crocodilo” houvesse despertado de seu sono profundo.
            Quando acordei, ainda aturdido pela brutal alomorfia, minha mulher e minha filha estavam ao meu lado, aterrorizadas, sem saber o que fazer diante de mim, metamorfoseado num... como descrever no que me transformei desde aquele instante?
            Eu preservara meu tamanho natural, a mente lúcida e a linguagem articulada, mas agora nada mais era do que um sáurio, um repulsivo sáurio, com o corpo revestido de lâminas de coloração verde-oliva, crista serrada sobre a cabeça, uma cauda comprida que me atrapalhava os movimentos e uma língua fina e protrátil, ou seja, eu podia alongá-la extraordinariamente para a frente. Em pouco tempo descobri que minha língua era tão fina que eu poderia projetá-la para fora da boca sem sem que precisasse abri-la.
            A primeira sensação que tive ao despertar foi a de viver um pesadelo, real como todos os pesadelos que tivera em minha vida. Mas, à medida que os minutos se passavam e que olhava minha mulher e minha filha apavoradas ao mesmo tempo que fechavam janelas e portas para que ninguém me visse ou entrasse, ia entendendo que tudo assumia contornos de uma terrível realidade. A insuspeitada coragem que elas demonstraram diante do meu aspecto só podia ser fruto do incomensurável amor que sentiam por mim, mesmo convertido naquela repugnante criatura. Estávamos em torno de um fato sobrenatural para o qual não tínhamos explicação. O que havia de certo para nós, e principalmente para elas, era que a criatura que ali estava continuava sendo eu, o pai, o marido, e fosse o que fosse o que tivesse ocorrido, minha vida deveria ser poupada até a última instância, uma vez que não demoraram a perceber que apesar do meu aspecto horripilante eu não lhes oferecia perigo.

            Minha filha entra no quarto. Pergunta se está tudo bem. Ela teme que me sinta solitário quando há visitas. Respondo que sim, suspendendo a escrita e olhando-a com ternura, com o que restou de ternura em meu olhar. Pois, apesar de tudo, apesar de não ter mais a forma humana, não perdi os sentimentos humanos. Ela se aproxima, beija meu rosto coberto pelas escamas e passa a mão pela minha crista serrada. Às vezes acho que já se acostumou a ter um pai que não pode sair do quarto e que todos pensam que já morreu. Uma morte misteriosa para a qual ele não tem uma explicação plausível. Porém, no dia dos pais, sei que padece, pois todos os alunos preparam um presente para seus pais em sala de aula e os entregam a eles no dia apropriado, e ela não pode fazer isso. Não se prepara um presente para alguém que está morto.

            Naquele sábado em que tudo aconteceu, as duas não desgrudaram de mim um só instante, e cogitaram se deviam chamar um médico, a polícia, os bombeiros. Decidiram não fazer nada e esperar. Não sabiam o quê, mas decidiram esperar. Trancaram as portas, apagaram as luzes, deixaram apenas a lâmpada do quarto acesa. Quando viram que eu recobrava a lucidez, perguntaram como me sentia. Disse que bem, que apesar daquele estranho acontecimento, estava bem, apenas tinha um pouco de fome e de sede. Até gracejei, dizendo que me sentia na pele de Gregor Sansa, o personagem de Kafka que ao acordar numa manhã se vira transmudado num monstruoso inseto. Nenhuma das duas viu a menor graça no gracejo.
            Minha mulher trouxe-me um pouco de café e pão e me serviu na boca, pois eu ainda estranhava o novo formato que adquiriram minhas mãos, agora com grossas unhas saltando de cada dedo. No dia seguinte, com alguma dificuldade, ela quis apará-las, mas eu impedi. Depois esse ato se revelou providencial, pois é com as unhas que eu realizo a única atividade que tem me ocupado até os dias em que revelo estes fatos, a atividade da escrita.
            – E agora? – ela me perguntou, no final do domingo. – Como você vai trabalhar, se relacionar com o mundo lá fora?
             – Ainda não pensei nisso – falei-lhe, sem muita reflexão.
            Era um problema grave que afetava não só a mim, mas a elas também. Não sabíamos que repercussão o caso teria entre vizinhos, amigos, parentes. Era quase certo que elas sofressem hostilidades por minha causa, e que eu fosse demitido do emprego e elas passassem privações em razão disso.
            – Nesse caso, não é melhor avisar alguém, a polícia, a empresa, a imprensa...
            – Não! – eu gritei.
            Não queria que ninguém soubesse do ocorrido. Muito menos as instituições que ela citara. Eu não confiava em ninguém. Em ninguém. Nunca confiara em ninguém. Apenas nelas. E, depois daquele episódio, mais do que nunca eu me apegava àqueles dois seres aos quais me achava unido pelos eternos laços familiares.
            Surpreendi-me ao perceber que não sentia o mesmo prazer de antes ao absorver o pão e o café. Era de outros alimentos que eu tinha fome. Alimentos menos afeitos ao ser humano que eu fora um dia: rãs, camundongos, coelhos, passarinhos e outros pequenos animais que prefiro não citar. Foi diante de tal constatação que descobri que minha natureza havia se adulterado de modo irreversível. Embora mantivesse o controle de meus pensamentos e não os derivasse para o mal, era fato que muitos de meus instintos pertenciam a outro ser, muito provavelmente ao ser que invadira a minha mente à audição de “Clara Crocodilo”, naquele infausto sábado.
            Que estranho nexo psíquico me uniria àquele personagem que me seduzira há vinte anos e com o qual agora eu retomara contato ao descobri-lo perdido num sebo de São Paulo? Teria sido, a audição daquela música, a pedra-de-toque que detonou todo o pesadelo que passei a viver desde então? São perguntas que me faço com cada vez menos frequência, pois a essa altura já perdi a esperança de recuperar minha natureza humana. Mas não posso, todavia, esquecer-me dela, pois sinto que um embate se trava dentro de mim. De um lado, o ser humano que fui, apaixonado, intenso, sensível, cultor das artes e das ciências. De outro, o sáurio que habita em mim, insidioso, virulento, carnívoro e animal, que não hesitará em me dominar caso eu lhe dê uma mínima chance.

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