domingo, 8 de abril de 2012

Um dia vi Deus num bistrô - crônica


É secular a fama de arrogante da filosofia em oposição à fama de humilde da religião. Remonta, se não me engano, aos primórdios do cristianismo, ocasião em que as duas formas de pensamento puderam finalmente ombrear-se, justapondo seus prós e seus contras – pois antes havia apenas o lógos grego.
Mas, não, não vou entrar na areia movediça da discussão do mérito de uma e de outra modalidade de caminho para a salvação da alma, nesta vida ou em outra. Cada qual com o seu talvez, como dizia uma antiga colega de trabalho. Ainda que eu veja com reservas o ato de se colocar os desígnios da vida nas mãos de um suposto messias, reconheço que o cristianismo tem todo o mérito de ter sido o precursor da defesa da igualdade entre os seres humanos – ideia que seria um dos pilares da Revolução Francesa – e de ter incorporado à história do pensamento ocidental o conceito de livre-arbítrio, pelo qual a virtude deixa de ser algo natural para ser algo que depende da vontade dos homens, ou seja, não há mérito na virtude que não tenha podido escolher entre o bem e o mal. Não é pouca coisa quando se pensa que desses avanços derivam as ideias de democracia irrestrita e dos direitos humanos, impensáveis na pólis grega.
Contudo, neste domingo de Páscoa, não posso me furtar a lembrar a ocasião e as circunstâncias em que li uma das coisas que mais me impressionaram até hoje quando o assunto é a oposição entre religiosidade e pensamento laico.
Era sábado e eu estava num restaurante da Rua Veiga Filho, no bairro de Higienópolis. Era um desses bistrôs que estendem as cadeiras e as mesas até a calçada, ocupando boa parte dela. Fazia um final de manhã abafado, com uma leve brisa redentora vindo nos aliviar de instante a instante. O clima alvissareiro daquele período da semana emprestava ao trecho da rua um ar festivo, tornando o ambiente agradável. Enquanto aguardava meu prato, lia no JT uma entrevista do escritor colombiano Fernando Vallejo, por ocasião de sua vinda à Flip daquele ano.
Lá pelas tantas, uma garotinha maltrapilha, de uns sete ou oito anos, veio vindo pela calçada e entrou no restaurante. Começou a pedir dinheiro ou comida para as pessoas nas mesas. Fixei minhas lentes no movimento da menina e na reação das pessoas, que variava entre duas formas de negativa: umas esboçavam um semblante compungido enquanto outras a ignoravam completamente, como se a menina não existisse. Mas ela existia, e de forma incômoda continuou passando entre as mesas recebendo ora o olhar compungido, ora a indiferença glacial. Algumas vezes era enxotada.
Voltei os olhos para a entrevista. No trecho que lia, o repórter perguntava a Vallejo se ele acreditava em Deus. Sua resposta foi uma das coisas que jamais esqueci, pela combinação entre o que eu lia e o que acabara de presenciar: “Claro que acredito”, o escritor respondeu. “É só olhar à sua volta para você ver a maldade de Deus em toda parte”.
Assim que terminei de ler a resposta, procurei a menina. Ela não estava mais lá, já tinha saído do bistrô. Avistei-a longe, inocentemente ziguezagueando pela calçada, como se brincasse consigo mesma, enfrentando com uma resignação comovente o sol escaldante do meio dia. Certamente estava faminta, sem entender o que fazia neste mundo no qual não pediu para estar.
À minha volta, as pessoas continuavam a conversar alegremente. Falavam de futebol, de política, de roupas, de carros, de computadores, de shows de rock, de cursos, de empregos. Talvez falassem até de Deus. Como se Deus não tivesse passado por ali.

Nenhum comentário: