domingo, 27 de novembro de 2011

Fantasmas - crônica

Quando ficamos mais velhos, os fantasmas começam a aparecer. Fantasmas do bem e fantasmas do mal, sem que vá aqui qualquer juízo de valor. Quando se entra na chamada idade provecta, tanto os fantasmas do bem como os do mal são bem vindos.
Não preciso esclarecer que em geral aparecem em sonhos, em curtas metragens sem o menor sentido, mas que, a gente sabe, guardam um sentido coeso em sua aparente falta de nexo. Os diretores desses curtas, se é que são dirigidos, parecem cultivar uma predileção natural pelo surrealismo e pelo nonsense, afinal, trata-se de sonhos. E quem disse que o surrealismo e o nonsense não nos dizem mais coisas do que o realismo e o naturalismo?
Outro dia acordei assustado e emocionado. Havia sonhado com uma conversa na cozinha da minha casa de infância, como muitas que presenciei em menino. Estavam ali gente viva e gente morta. Gente de um passado remotíssimo e gente do meu dia a dia atual. E – talvez o que mais me tenha emocionado no sonho –, gente que não se conheceu.
Estavam ali, por exemplo, minha mãe, que faleceu em 1985, e minha filha, nascida em 1989. Não digo que as duas conversassem durante aquela nebulosa aparição, na cozinha de azulejos azuis e cerâmicas vermelhas que meu pai mandou colocar com o dinheiro de sua aposentadoria, em 1973. Não, elas não conversavam. Minha filha ainda era a garotinha ligada no 220 que corria pela casa. E minha mãe, a mulher de olhar atormentado pelo câncer que a levaria, uma das imagens que me ficou dela. Mas só de imaginá-las juntas, no mesmo ambiente, com outros convivas que por vários descaminhos do destino jamais poderiam estar juntas, só isso já valeu a emoção que me percorreu do coração às têmporas.
Na manhã do dia em que tive esse sonho, enquanto sorvia o café e mastigava o pão com manteiga num balcão anônimo de padaria, agradeci a esse imaginário diretor pelo script da madrugada. Me fez acreditar, ainda que por minutos (a gente nunca sabe a extensão de um sonho), que a vida vale pelo que vivemos. Pelo que foi e pelo que poderia ter sido.

4 comentários:

Marcia Barbieri disse...

Muito bonita essa crônica, me fez lembrar Buñuel, Jung e também Pedro Páramo, já leu?

um beijo

Samir Thomaz disse...

Puxa, Marcia, que comparações top... hehe. Obrigado, de todo modo. "Pedro Páramo" é um daqueles livros que nunca consegui ler. Ouço maravilhas dele, mas simplesmente não consigo, dá um bloqueio, sei lá. E como minha fase de empolgação com os latinos já passou, acho difícil uma nova tentativa. Mas quem sabe.... Beijos.

Livros e tudo mais disse...

Caro Samir

Por ora não comentarei a crônica. Quero saboreá-la um tanto mais.
Agora, escrevo apenas para retomar o contato, para um bom papo.
Agnaldo (Biro)
deixo o email
agnaldoeditorial@gmail.com

Andréa Vidal disse...

É disso que eu falo quando "cobro" o livro de crônicas. Muito boa, Samir! =)