sexta-feira, 6 de maio de 2011

Semana de trote

Março de 2003. Início do ano letivo na faculdade Cásper Líbero. Segunda-feira. Os corredores estão movimentados. Os alunos se reencontram depois de quase três meses de férias. Trazem os semblantes leves, livres da preocupação com trabalhos, provas e seminários. O clima é de confraternização. Há uma profusão de beijos, abraços e olhares ávidos de novidades. Grupos se formam e se desfazem como por geração espontânea. O cheiro de cigarro impregna o ar do corredor.
Estamos na semana de trote. As aulas deviam ter começado há uma semana. Mas no Brasil, como em muitos países, é sagrado: os primeiros dias de aula são reservados à recepção dos chamados “bixos”. A diretoria tolera. Os professores respeitam. Os próprios bixos aceitam o trote como um rito de passagem necessário. Os cabelos raspados de improviso nos corredores da faculdade parecem conferir a eles o mesmo status que o primeiro beijo, o primeiro namorado ou namorada, o primeiro carro, a perda da virgindade, o primeiro emprego. Com o direito garantido a, no ano seguinte, na condição de veteranos, poderem aplicar as mesmas humilhações nos bixos que chegarem.
De onde estou, observo tudo com reserva. Além do caderno de 200 páginas com ilustrações do Dilbert, que uso desde o primeiro ano, trago comigo o livro do Elio Gaspari, A ditadura envergonhada, que peguei na biblioteca. Todos que me cumprimentam, ao reconhecerem a capa azul do primeiro volume, fazem referência à obra:
– Legal, você está lendo?
– Esse livro parece ser bom, não?
Faço que sim com a cabeça, embora ache o livro um pouco chato – uma enfiada de nomes de generais e de patentes militares, assunto pouco palatável. Mas concordo que é preciso saber como eles se articularam para atarantar por mais de duas décadas nossa já atarantada vida republicana.
Felipe me conta que lera os dois volumes nas férias. Jaime diz que pretende lê-lo em breve. Adriana também, assim que terminar um livro do Caco Barcelos. Sidney, por sua vez, mostra com entusiasmo a alentada biografia de Kurt Cobain que está devorando. Faço cara de conteúdo. Não sou muito versado em Nirvana. Meu último ídolo do rock foi Freddy Mercury. Devo estar defasado de há pelo menos uma década em matéria de rock. Mesmo assim, congratulo-o pela leitura. Biografias estão entre os meus gêneros preferidos.
Sou aluno do 2º JO D. Quero dizer, do segundo ano de jornalismo, turma D. Agora, um veterano. Mas, para mim, todo aquele ritual a que assisto entre curioso e contido não faz muito sentido. Não entendo muito quando Klinger e André Tadao, meus colegas de turma, dão ordens aos bixos para que formem um fila no corredor. Minha confusão aumenta ao verificar que os bixos obedecem, submissos como gados em direção ao matadouro. Em seguida, Klinger e Tadao ordenam que eles se movimentem e caminhem em fila indiana rumo do saguão de entrada. E os bixos se precipitam incontinenti. Garotos e garotas de classe média, instruídos, inteligentes, sacados, vão andando como prisioneiros de guerra, tangidos pela voz de comando de Klinger e de Tadao, um Tadao diferente do japonês caladão que conheço das aulas. Em segundos todos somem no saguão e logo estarão na Avenida Paulista, onde farão pedágio nos faróis.
Não é que eu não entenda a liturgia do trote. Compreendo que, para o veterano que já foi bixo, e principalmente para o próprio bixo, trata-se de uma etapa da vida que se inaugura. E que merece ser celebrada de todas as formas possíveis e ao alcance da fértil imaginação juvenil. Entendo a carga de adrenalina que esse momento comporta. Ou pelo menos tento entender que, para um veterano, naquele momento, esse rito é tão essencial quanto o ar que ele respira. Ainda que cenas de trote sempre me façam lembrar do calouro de medicina que morreu afogado na piscina da USP durante uma festa de recepção aos novatos, anos atrás. Aquele episódio ficou marcado como o extremo de estupidez a que esse tipo de celebração pode chegar.
O motivo da minha reserva diante de toda aquela agitação, no entanto, tem outra razão. Não pertenço à geração de Klinger e Tadao. Eles devem ter entre 18 e 19 anos. São recém-egressos do ensino médio, como a maioria dos alunos da minha turma. Pertencem à safra de universitários que já nasceu com bits e bytes em seu DNA. A geração saúde, para a qual o uso da camisinha se erige tão natural quanto vestir a cueca ou a calcinha depois do banho. A geração politicamente correta, para a qual, salvo exceções, constitui grave heresia transgredir as regras, desrespeitar minorias, embora possuam suas próprias regras de transgressão. Vão à parada gay sem serem homossexuais. Votam no Lula sem rezar pela cartilha de Marx. Participam da passeata pela paz por honra da firma, apenas porque é in bradar na Avenida Paulista pela paz. Cultivam o espírito gregário, no qual é quase uma ofensa se destacar ou criar conflitos.
Quanto a mim, tenho 40 anos. Nunca rasparam o meu cabelo por ter passado em vestibular na vida. Nunca fiquei nos faróis cobrando pedágio dos motoristas. Não pintaram meu rosto com o nome do curso ou da faculdade. Nunca fiz parte do primeiro time da sala em qualquer curso da minha atribulada vida escolar – minha timidez e minha inépcia para qualquer tipo de liderança jamais permitiram. Sou o estranho no ninho. Quase um intruso. Minha folha corrida inclui um casamento de 18 anos, uma filha de 14, dois anos no curso de Letras na USP, um emprego de editor numa editora de São Paulo e quatro livros publicados, o mais rumoroso deles um relato autobiográfico sobre a minha experiência como portador do vírus da Aids.
Não é difícil concluir que existem mais mistérios entre mim e a geração de Klinger e Tadao do que a vã diferença de idades. Há um hiato abissal de vivências entre nós. Uma diferença de espírito de época. Tive a idade deles na década de 1980, a famigerada década perdida. Vivi ecos de 1968, da contracultura. Fui atingido pelos estilhaços dos anos de chumbo da ditadura militar. Nesse período, os punks dominavam a cena musical. A guerra fria ainda respirava. Ter atitudes radicais era um ato bem visto. Os códigos eram outros.
No dia seguinte, terça-feira, lá estão eles novamente, Klinger e Tadao, dando ordens aos bixos, como se fossem dois generais linha-duras dos livros do Elio Gaspari. E lá estão também os bixos, prontos a recebê-las. Só que dessa vez meus colegas de turma querem fazer diferente. Dado o meu ar provecto, pedem que eu entre na sala dos novatos e me apresente como professor ad hoc. Reluto.
– Ninguém vai desconfiar – insiste Klinger.
– Pô, Samir, você tem pique de professor – incentiva Jonas.
– Entra lá e diz que você é o Arbex – pede Jaime de modo maroto, fazendo referência ao professor José Arbex Jr., um dos mais conceituados e controvertidos da faculdade.
Nem parece que Jayme é médico, que tem 36 anos e que já foi casado. Depois de mim, é o mais velho da turma. Mas um dos mais traquinas e inquietos em sala. Somos praticamente da mesma geração.
Meu recato, no entanto, me impede de participar da brincadeira. Os alunos até forçam a barra, chegam a me apresentar como o professor Samir, que vai dar aulas de português. Cogito de entrar no jogo, mas volto atrás. Não me vejo representando aquele papel. Mesmo com muitos bixos já me olhando com a reverência com que se olha para um professor, o que me deixa bastante encabulado. Por uma fração de segundos, tenho a impressão de que, se entrasse na sala, me apresentasse como o professor de português e escrevesse na lousa uma extensa lista de livros que os alunos devessem comprar ao longo do ano, eles a copiariam em seus cadernos sem questionar nada.
Naquele dia, restrinjo-me a conversar na cantina, colocar as novidades em dia, me inteirar das novas matérias e dos novos horários. Depois, vamos todos para o Puppy, o bar em que a moçada costuma se reunir – e do qual não gosto, prefiro o Café Creme ou o Prainha Paulista. Todos, quero dizer: o Jaime, o Sidney, a Adriana, o Diego, a Nádia, o Fini, o Felipe, a Renata, o Jonas – meio que o pessoal mais próximo, aqueles com quem mais converso, só faltaram a Flávia e a Eliane.
A conversa flui relaxada e informal. Nada de grandes temas. Fazemos planos de assistir a alguns filmes – planos que no primeiro ano tinham ficado só na promessa. De nossa mesa, assistimos à cena mais comum naqueles dias: uma turma de bixos ser feita de gato-sapato na mesa ao lado por veteranos sedentos de sangue. Definitivamente, não está em mim aquilo. Mas fico pensando. Não descarto a idéia de fazer um tour de force e participar da farsa da sala de aula no ano seguinte. Quem sabe? Era um trote até que espirituoso.
(Texto escrito em março de 2003)

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