sábado, 7 de janeiro de 2012

No café - crônica


No café discreto em que estou – tão discreto que me sinto à parte da vida –, um casal com sua filha deficiente se sentam na mesa ao lado. O homem e a mulher aparentam a mesma idade, em torno de quarenta anos. A menina não deve ter mais do que quinze.
Não tenho conhecimento médico para identificar o problema que acomete a garota. Seu rosto apresenta um afundamento lateral que compromete estética e funcionalmente a boca e o olho esquerdo. Vejo cicatrizes de contornos irregulares, na certa tentativas da medicina de amenizar o impacto que aquela face causa em quem a contempla.
A garota traja tênis all star, calça jeans com rasgos calculados e uma camiseta com o rosto da Amy Winehouse. Na testa, uma franja coquete rente às sobrancelhas. Pelo contexto da conversa, deduzo que a menina cursa o ensino médio.
Percebo que o rosto da garota chama a atenção de imediato. O olhar das pessoas, tão logo o divisam, voltam-se para verificar a natureza da deformidade. Passado o choque, a reação fica por conta da discrição de cada um.
Chama minha atenção a abnegação dos pais para que a filha sofra o menos possível os efeitos sociais de seu infortúnio. O que se apresenta a mim naquele café é apenas a curta sequência de um pungente filme sobre devoção e entrega. Essa abnegação fica patente quando a garçonete se aproxima para anotar o pedido. Observo que a garota não faz cerimônia e, com uma certa graça, pede algo que a garçonete não entende.
–Desculpe... – a moça hesita, entre simpática e aflita, e volta-se num olhar súplice para os pais.
O pai compreende o embaraço:
– Ela quer saber se vocês servem bureka... – ele diz, num sorriso constrangido, que, presumo, afeta desconforto, como se a garota se expressasse num dialeto desconhecido e a ele coubesse o papel de tradutor-intérprete.
– Desculpe, senhor... – a garçonete tartamudeia, ante o olhar ansioso da garota.
Antes que o pai explique à garçonete o que é bureka, ao seu modo a garota tenta explicar seu pedido, mas é interceptada com rudeza calculada pelo pai (“Eu explico pra ela, Muriel...”).
– Desculpe, moça, – volta-se o pai – a gente sabe que não é em todo lugar que tem bureka.
E, voltando-se para a filha, explica a ela que não servem bureka ali.
Muriel faz um muxoxo de decepção. E sem perceber a aflição da garçonete, logo se refaz e dá um pulinho na cadeira, voltando os olhos para o cardápio.
– Nós já faremos o pedido – diz então o pai, um modo de liberar a moça e ganhar tempo para a escolha da filha.
O olhar do pai quase cruza com o meu. Disfarço que os observo. Na verdade fujo daquele olhar.
Gosto de imaginar as histórias silenciosas que correm, como rios subterrâneos, por trás das conversas que ouço. Tudo levado a termo de forma discreta, sem nenhum propósito de julgamento.
A garota age como se não tivesse as limitações de comunicação que tem. E a atitude do pai, de servir de intermediário, deve ser rotina na vida daquela pequena família. Uma terna compaixão começa a tomar forma dentro de mim.
A imagem me remete aos passeios que dava com minha filha, ao tempo em que ela era pequena, com menos idade ainda do que Muriel. Um período que se apresenta comprimido na memória, como se tivesse sido de apenas alguns meses.
Em minutos a garçonete volta para anotar o pedido. O pai mais uma vez procura facilitar as coisas, e faz um arrazoado do que cada um vai querer:
– Dois cafés puros, um chocolate médio, duas baguetes com manteiga e um croissant quatro queijos, por favor.
Refeita de sua aflição, a garçonete anota tudo. E antes que se retire, ouve a única palavra dita por Muriel que não precisa ser traduzida pelo pai:
– Obrigada.
Desvio de vez meu olhar e tento voltar aos pensamentos que me tomavam antes de notar a presença do casal. Não consigo, porém. Devia estar imerso em algo sem importância. Um desses pensamentos que nos fazem ficar horas e horas num café sem fazer nada e depois evaporam da mente para nunca mais.
De Muriel e de seus pais abnegados, contudo, eu nunca vou esquecer.

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